São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 2002

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GILBERTO DIMENSTEIN

Gilberto Gil e a cultura da hipocrisia

Gilberto Gil inovou a cultura do poder. Sem inventar desculpas ao explicar a indecisão diante do convite para o Ministério da Cultura, disse que, antes do Brasil, vinha seu próprio bolso.
Como um simples trabalhador diante de uma chance de emprego, ele calculou as despesas domésticas e não precisou se esforçar para concluir que o salário de ministro, cerca de R$ 8.000 mensais, vale bem menos do que o cachê de seus shows -nos quais ele quase sempre se diverte e, invariavelmente, é aplaudido de pé, com direito a pedido de bis.
Não se tem notícia de um brasileiro que, convidado para ocupar o cargo de ministro, tenha compartilhado publicamente, sem constrangimento, o receio de aceitar apenas por causa do contracheque.
 
Além de ganhar mal, de viajar muito, de enfrentar cerimônias maçantes, de ouvir queixas e pedidos de todos os lados e de correr o risco de se envolver nas futricas palacianas no "puxa-saquismo" da corte, um ministro sempre vai encontrar alguém disposto a vaiá-lo. "Vou ter de me virar", justificou Gil, antes mesmo de ter sido oficialmente indicado. Informou que buscaria fórmulas alternativas para completar, com bicos, a renda familiar. Mais uma inovação: bicos de ministros são, na maioria das vezes, discretos ou clandestinos.
 
A franqueza do compositor não pegou bem entre integrantes da cúpula do futuro governo nem entre artistas ou intelectuais, supostamente reverentes ao interesse público acima das mesquinharias privadas. Pediu-se, nos bastidores, que o compositor fosse desconvidado, até porque não estaria afinado com o programa do PT -argumento que, se levado às últimas consequências, produziria antes da posse uma reforma ministerial. Hipocrisia da cultura do poder.
Sem saber, Gilberto Gil explicitou um dos problemas mais sérios do Estado brasileiro: paga mal. E, como paga mal, tem dificuldade de atrair ou de manter talentos. Um ministro equivaleria a algo como um presidente de uma grande empresa. Mas nenhuma grande empresa conseguiria atrair para chefiá-la alguém por menos de R$ 30 mil mensais, sem contar os benefícios indiretos.
 
A cúpula do PT está discutindo um aumento de 50% no salário do presidente. O valor hoje é de R$ 8.800 mensais, abaixo do que senadores e deputados passaram a ganhar graças a uma votação na semana passada, realizada às pressas e por voto simbólico (o nome de quem votou não aparece no painel). O salário deles pulou de R$ 8.240 para R$ 12,7 mil. É menos do que os R$ 17 mil desejados -mas é um reajuste muito maior do que o do restante dos mortais. Quem vale mais: um presidente ou um deputado?
O aumento provocou indignação e talvez não caia muito bem Lula subir seu salário. Afinal, o salário mínimo vai, na melhor das hipóteses, para pouco acima dos R$ 240, e o reajuste do funcionalismo, no geral, dificilmente vai ultrapassar (e olhe lá) os 10%. Mas será que é bom para a democracia um parlamentar ganhar menos que um gerente de empresa, obrigado, assim, a rastejar por bicos, muitas vezes clandestinos?
Mais fácil, para agradar ao leitor, seria afirmar que deputados e senadores não valem um salário mínimo. Bobagem. É interessante observar como o PT hoje é vítima do primarismo de muitas de suas posições.
 
Uma das bombas nacionais está justamente no "efeito Gil". O poder público não tem recursos para atrair e manter os talentos, a folha de pagamentos está no limite e, para completar, gastam-se bilhões para manter os privilégios, amparados no passado pelo PT, de seus aposentados. No setor público, os funcionários aposentam-se com o valor de seu último salário. É, obviamente, uma conta que não fecha -ou melhor, só fecha com o dinheiro de quem paga impostos. A carga de impostos já passou do limite do suportável. Um indivíduo de classe média trabalha cerca de três meses apenas para o governo, que presta serviços medíocres.
 
Vamos saber logo no início do próximo ano se Lula é candidato ao cargo de estadista pelo tamanho de sua disposição a desarmar a bomba do funcionalismo. Para tanto, terá de fazer o que Fernando Henrique Cardoso não fez: mostrar que não se submete ao lobby, tão incrustado no PT, e que consegue podar privilégios nas aposentadorias.
É a chance de evitar a falência do Estado a médio prazo, de liberar mais recursos para os gastos sociais, sem tirar mais dinheiro de quem trabalha -e, ao mesmo tempo, de dispor de mais folgas orçamentárias para chamar o que existe de melhor na sociedade para ocupar cargos oficiais.
 
PS - Se o futuro ministro quiser fazer algo pela cultura brasileira, o primeiro e óbvio passo será usar seu poder para exigir que o patrocínio, bancado pela isenção de impostos, tenha contrapartida social. Ou seja, se um filme ou uma peça de teatro, por exemplo, recebem incentivos fiscais, deve haver cotas de acesso gratuito a esses espetáculos para estudantes de escolas públicas.

E-mail - gdimen@uol.com.br

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