São Paulo, domingo, 23 de maio de 2004

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DEPOIMENTO

Mandarim, a outra muralha da China

BERNARDO CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Comecei a estudar chinês (mandarim) achando que, para ler e escrever, bastava compreender o sentido de cada um dos mais de 10 mil caracteres e depois combiná-los em frases, como num código simplista e infantil em que não houvesse expressões idiomáticas próprias. Quebrei a cara.
Quando fui à China, em 2002, comprei um livro que promovia um método autodidata e gastei meus dias a tentar decifrar as frases mais simples, em vão. O sentido era uma parede intransponível. Desafio quem supõe que uma língua sem conjugação de verbos não pode ser difícil a tentar entender a lógica peculiar por trás da sintaxe do chinês.
De volta ao Brasil, passei a estudar com uma professora de Taiwan e o que já não era simples se complicou. Em Taiwan, ainda se usam os caracteres clássicos, com mais traços do que os caracteres simplificados adotados pelos comunistas.
Para dificultar as coisas, e ao contrário da China continental, que se serve do alfabeto latino para fazer a transliteração dos ideogramas (pinyin), no chinês tradicional o som das palavras é dado por um outro sistema de signos (zhuyin fuhao), que o aluno precisa decorar além dos milhares de caracteres.
Quando a minha professora taiwanesa resolveu tirar férias, aproveitei a oportunidade para substituí-la por alguém da China continental. Até certo ponto, foi um alívio. Meu objetivo era ler textos no original e traduzi-los. Como tudo avança muito lentamente para um estudante de chinês, decidi me adiantar e propor à nova professora que lêssemos juntos um conto de Lu Xun, maior expoente da literatura chinesa do século 20. Eu tinha comprado, em Xangai, a edição bilíngüe oficial, em chinês e inglês, dos seus contos reunidos.
Começamos por um conto cuja tradução em inglês não podia ser mais clara e simples. Mas tive de desistir logo na primeira linha, porque não havia jeito de encontrar entre os caracteres chineses naquela frase nenhum que correspondesse aos "dois irmãos" da tradução em inglês.
Tentei conter as minhas ambições e voltei ao dia-a-dia de um aluno modesto. Fiz bem, porque mais de um ano depois ainda morro de medo e de vergonha quando a professora anuncia uma aula de conversação. Graças à homofonia, que faz com que caracteres díspares tenham o mesmo som, e da dificuldade (incapacidade, no meu caso) de distinguir os quatro tons que, aplicados a cada vogal, mudam o sentido das palavras, nunca sei se ela está me perguntando como vai minha mãe ou se comprei um cavalo.


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