São Paulo, sábado, 23 de maio de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LETRAS JURÍDICAS
Corrupção endêmica

WALTER CENEVIVA
da Equipe de Articulistas

Recente matéria de capa do jornal americano "USA Today", voltada para a situação em Miami, tratou da corrupção endêmica que assola a política da cidade, sobretudo a relacionada com o financiamento de campanhas, assunto no qual a hipocrisia brasileira tocaria as raias do ridículo se não desse margem a toda sorte de exploração.
O jornal compara a situação atual à de Chicago dos anos 20, com exceção apenas dos duelos de metralhadora nas ruas da cidade. O assunto também figura na mídia nacional, pois a lei que regulará as eleições deste ano não solucionou o velho problema do financiamento legal das candidaturas, como se viu, nas últimas semanas, ao serem repercutidas as aflições dos bispos da CNBB.
No Brasil, assim como nos Estados Unidos, um dos problemas é a distância entre o texto legal vigente e a realidade prática. Em outras palavras: o partido político que seguir a lei ao pé da letra terá sérias dificuldades para financiar suas campanhas. A contrapartida do enfoque pragmático mostra que a Justiça Eleitoral não tem meios suficientes para tornar efetiva a fiscalização dos gastos. O dia-a-dia da vida traz um terceiro elemento corruptor: o telhado de vidro é quase geral. Poucos atiram pedras, servindo-se delas, geralmente, para o desabafo dos derrotados.
Tudo somado esbarra em que, manifestado o apoio do povo ao nome de um candidato, a Justiça Eleitoral tende a respeitar o voto popular, ante a impressão geral de que vencidos e vencedores se serviram dos mesmos expedientes. Em Miami, recentemente, a Justiça iniciou 23 processos contra um eleito que, processado, terminou afastado do cargo. Chamadas novas eleições, ele se candidatou, e seus votos esmagaram a oposição.
Por outro lado, não podemos ignorar a heterogeneidade do país. As condições de votação e de gastos no centro-sul e aqui, nas grandes cidades, não se comparam com pequenos núcleos interioranos, em todo o território nacional. A política tem muitos traços de semelhança com a mais velha das profissões, e, assim, a corrupção não é erradicável definitivamente. Contudo, nos pequenos núcleos urbanos, é possível o conhecimento direto dos fatos, coisa inviável nos grandes centros, ante a complexidade da vida. Naqueles, por exemplo, o voto dos mortos é coisa normal. Normalíssima em Miami.
Insere-se nesse campo heterogêneo um último fator: os homens encarregados de elaborar as leis são, em boa parte, os beneficiários de seus defeitos. A história mostra que os eventuais bem-intencionados na criação de leis seguras, quase imunes aos desvios habituais, não foram suficientemente hábeis para impedir os não-éticos de inserir dispositivos tendentes à satisfação de interesses imorais. O conjunto das circunstâncias apontadas termina criando o pior dos males, consistente na aceitação da corrupção como um fato próprio da política e, em particular, das campanhas eleitorais, como se viu na confissão recente de um parlamentar do PTB a respeito de ofertas atribuídas a Paulo Maluf para "compra" do apoio do partido. Ofertas logo desmentidas.
O combate à corrupção eleitoral e às endemias que vitimam a legitimidade do voto é um dos poucos casos em que o cuidado na elaboração das leis e na punição severa dos que as ofenderem pode contribuir efetivamente para a erradicação dos maus costumes.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.