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MOACYR SCLIAR
O bobo da corte
Novo bobo da corte britânico é sem
graça. Nigel Rodes está sendo festejado pelos britânicos como o primeiro
bobo da corte oficial desde 1649. No
passado os bobos da corte corriam o
risco de serem decapitados a mando
de monarcas ávidos por uma gargalhada. Se as regras antigas ainda
prevalecessem, Rodes poderia perder
a cabeça. Numa entrevista à Folha
deixou a desejar em sua missão de
ser engraçado. Mundo, 15.ago.2004
Durante muitos anos o
bobo da corte conseguiu
sair-se bem em sua missão. Era
engraçado e fazia rir, muitas vezes até às lágrimas, os membros
da casa real de um minúsculo
país encravado no meio da Europa. Ria a rainha, riam os príncipes, as princesas, os viscondes, os
condes, os duques, os arquiduques, os barões assinalados. Por
causa disso seu salário tinha sido
aumentado e ganhara uma confortável casa onde vivia com a família.
E então o bobo deixou de ser engraçado.
Não aconteceu subitamente.
Nada de catastrófico. Aos poucos
foi perdendo a vontade de contar
piadas, de fazer micagens, de colocar no nariz aquela bola vermelha que o deixava com cara de palhaço. O que o deixou apreensivo:
ser engraçado era a sua missão na
vida. Mais: era o que o mantinha
vivo. No passado, outros bobos tinham, literalmente, perdido a cabeça por falta de humor.
Estou doente, foi a primeira coisa que lhe ocorreu. Alguma enfermidade insidiosa, decerto, dessas
coisas que vão se instalando devagarinho e acabam com a alegria de viver da pessoa. Consultou
um médico e ouviu a notícia que
tanto temia: não havia nada de
errado com ele, os exames eram
normais. O que o deixou consternado. Diante da surpresa do médico, teve de explicar: nós, bobos,
somos assim, foi a resposta dele,
rimos quando temos um problema e ficamos sérios quando tudo
vai bem. O doutor não achou graça. Mais um que não achava graça.
Em desespero, o bobo começou
a ler livros de piadas, a assistir a
espetáculos humorísticos. Não hesitaria em plagiar os outros, desde
que recuperasse a capacidade de
rir e fazer rir.
Não a recuperou. Diante do
sombrio desfecho que se avizinhava, decidiu: ou viveria como
bobo ou não viveria mais. E foi o
que anunciou à corte, reunida na
sala do trono:
- Não tenho mais como fazer
rir Vossas Altezas. Portanto, estou
dando adeus à vida. Vou me suicidar.
E aí, a surpresa: depois de uma
tensa pausa, começaram a rir, todos. Ria a rainha, riam os príncipes, as princesas, os viscondes, os
condes, os duques, os arquiduques, os barões assinalados. Riam
que se matavam, rolavam no
chão de tanto rir.
Desde então a cena tem se repetido: à corte reunida, ele anuncia
o seu suicídio. E é aquele ataque
de riso.
Ele está feliz. Feliz, mas apreensivo. Um dia a piada perderá a
graça. Um dia a rainha, os príncipes, as princesas, os viscondes, os
condes, os duques, os arquiduques, os barões assinalados ouvirão em fúnebre silêncio o seu
anúncio. E aí nem o suicídio resolverá o problema.
O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de
ficção baseado em matérias publicadas
no jornal.
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