São Paulo, segunda-feira, 23 de agosto de 2004

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MOACYR SCLIAR

O bobo da corte

 Novo bobo da corte britânico é sem graça. Nigel Rodes está sendo festejado pelos britânicos como o primeiro bobo da corte oficial desde 1649. No passado os bobos da corte corriam o risco de serem decapitados a mando de monarcas ávidos por uma gargalhada. Se as regras antigas ainda prevalecessem, Rodes poderia perder a cabeça. Numa entrevista à Folha deixou a desejar em sua missão de ser engraçado. Mundo, 15.ago.2004

Durante muitos anos o bobo da corte conseguiu sair-se bem em sua missão. Era engraçado e fazia rir, muitas vezes até às lágrimas, os membros da casa real de um minúsculo país encravado no meio da Europa. Ria a rainha, riam os príncipes, as princesas, os viscondes, os condes, os duques, os arquiduques, os barões assinalados. Por causa disso seu salário tinha sido aumentado e ganhara uma confortável casa onde vivia com a família.
E então o bobo deixou de ser engraçado.
Não aconteceu subitamente. Nada de catastrófico. Aos poucos foi perdendo a vontade de contar piadas, de fazer micagens, de colocar no nariz aquela bola vermelha que o deixava com cara de palhaço. O que o deixou apreensivo: ser engraçado era a sua missão na vida. Mais: era o que o mantinha vivo. No passado, outros bobos tinham, literalmente, perdido a cabeça por falta de humor.
Estou doente, foi a primeira coisa que lhe ocorreu. Alguma enfermidade insidiosa, decerto, dessas coisas que vão se instalando devagarinho e acabam com a alegria de viver da pessoa. Consultou um médico e ouviu a notícia que tanto temia: não havia nada de errado com ele, os exames eram normais. O que o deixou consternado. Diante da surpresa do médico, teve de explicar: nós, bobos, somos assim, foi a resposta dele, rimos quando temos um problema e ficamos sérios quando tudo vai bem. O doutor não achou graça. Mais um que não achava graça.
Em desespero, o bobo começou a ler livros de piadas, a assistir a espetáculos humorísticos. Não hesitaria em plagiar os outros, desde que recuperasse a capacidade de rir e fazer rir.
Não a recuperou. Diante do sombrio desfecho que se avizinhava, decidiu: ou viveria como bobo ou não viveria mais. E foi o que anunciou à corte, reunida na sala do trono:
- Não tenho mais como fazer rir Vossas Altezas. Portanto, estou dando adeus à vida. Vou me suicidar.
E aí, a surpresa: depois de uma tensa pausa, começaram a rir, todos. Ria a rainha, riam os príncipes, as princesas, os viscondes, os condes, os duques, os arquiduques, os barões assinalados. Riam que se matavam, rolavam no chão de tanto rir.
Desde então a cena tem se repetido: à corte reunida, ele anuncia o seu suicídio. E é aquele ataque de riso.
Ele está feliz. Feliz, mas apreensivo. Um dia a piada perderá a graça. Um dia a rainha, os príncipes, as princesas, os viscondes, os condes, os duques, os arquiduques, os barões assinalados ouvirão em fúnebre silêncio o seu anúncio. E aí nem o suicídio resolverá o problema.


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.


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