São Paulo, domingo, 23 de agosto de 1998

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RACISMO CORDIAL 3
Para norte-americano, quantidade de distinções de tons de pele pode enfraquecer poder de pressão do negro
Historiador estranha poucos negros no país

DANIELA FALCÃO
da Sucursal de Brasília

Três décadas após a aprovação do Ato de Direitos Civis, que transformou em crime a discriminação racial nos EUA, o país ainda está longe de eliminar o racismo do cotidiano de sua população.
A maior prova disso é a intensidade do debate sobre questões raciais, que ganhou força no ano passado, com a criação, pelo presidente Bill Clinton, da Comissão Presidencial sobre Raça nos EUA.
"O dia em que o racismo não for mais um problema, a necessidade de ficarmos debatendo o assunto vai acabar", afirmou à Folha o historiador John Hope Franklin, 82, presidente da comissão.
Um dos maiores historiadores negros dos EUA, Franklin foi escolhido por Clinton por ter uma posição intermediária entre os dois grupos que polarizam o debate sobre raça -os "otimistas", que acham que o racismo acabou, e os "céticos", que negam que tenha havido avanços.
Franklin, que esteve no Brasil a convite da Fundação Palmares e da Unesco para participar de seminário sobre a rota de escravos, disse que ficou surpreso com a quantidade relativamente pequena de negros no país.
Leia abaixo os principais trechos:
Folha - Os EUA conseguiram virar um país à prova de racismo?
John Hope Franklin -
Embora muitos colegas achem que sim, ainda há muito a ser feito. E a melhor prova disso são as milhares de queixas feitas diariamente. Também não concordo com quem fala que não houve progresso. Já evoluímos muito, mas não é nada perto do que é preciso ser feito.
Folha - Em que áreas ainda há racismo nos EUA hoje?
Franklin -
O negro ainda encontra muita discriminação na hora de comprar casa, no trabalho, quando quer alugar um carro. Nas escolas em que maioria dos alunos é branca também há pressão para que negros não sejam matriculados. Mas a pior discriminação é feita pelos professores. Eles esperam menos dos alunos negros. Ou seja, a criança negra já começa em desvantagem, porque, se os professores cobram menos, os alunos terminam rendendo acreditando que têm menos potencial.
Folha - Ainda é difícil para o negro competir com o branco no mercado de trabalho?
Franklin -
É, sobretudo em algumas funções. Eu digo que os EUA têm um telhado de vidro que impede negros e mulheres de exercer determinadas funções. Mesmo em meios em que os negros são maioria, como nos esportes, há uma barreira que impede que cheguemos aos cargos que exigem, teoricamente, maior habilidade intelectual, como os de empresários e dirigentes. Até pouco tempo atrás, o negro quase não tinha espaço no mercado financeiro e no alto escalão do governo.
Folha - Há três anos, o livro "A Curva do Sino" trouxe de volta o debate sobre a possibilidade de os brancos terem Q.I. maior do que o dos negros. O sr. ficou surpreso com o sucesso do livro?
Franklin -
Muito, ele virou best seller. Perdi noites de sono tentando descobrir por quê. A conclusão, triste, a que cheguei é que muitas pessoas compraram esse livro porque ele validava o ponto de vista que elas tinham.
Folha - A existência de leis que punem quem comete atos racistas ajuda a mudar essa mentalidade? Franklin -Só adianta se houver uma estrutura judicial bem montada, que agilize a apuração das queixas e puna os culpados. O problema dos EUA é que são feitas milhares de queixas por mês e o departamento encarregado de apurá-las não tem pessoal suficiente.
Folha - O sr. é a favor da ação afirmativa (cotas que privilegiam a contratação ou a admissão em universidades de minorias)?
Franklin -
Sou totalmente a favor. Não acho que o desempenho acadêmico em testes deva ser o critério mais importante de admissão numa universidade, há outros fatores que devem ser levados em conta, e o fato de pertencer a um grupo minoritário é um deles. Principalmente se o aluno estiver buscando a vaga em uma profissão em que é minoria. A ação afirmativa está quebrando um ciclo de preconceito, por isso é válida.
Folha - O sr. acha que o racismo do Brasil é muito diferente?
Franklin -
Fiquei surpreso na minha primeira visita ao Brasil com o número relativamente pequeno de brasileiros de pele realmente escura, como a minha. Vi outras tonalidades mais claras. Também achei estranha a quantidade de distinções de tons de pele que vocês fazem. Nos EUA, não interessa o tom da sua pele, se há pelo menos uma gota de sangue africano, mesmo que sua pele seja branca como a neve, você é considerado negro. Temos uma linha de separação entre as raças bastante rígida. Acho isso um pouco estúpido, mas ao criar tantos nomes diferentes para tons de pele, vocês correm o risco de enfraquecer o poder de pressão dos negros.
Folha - Há outras diferenças?
Franklin -
A principal diferença é o fato de ter havido miscigenação no Brasil desde o início da colonização. Os portugueses vieram para o país sem suas mulheres e, logo que chegaram, começaram a se misturar com índias e escravas negras. Já os ingleses vieram com as mulheres para reproduzir nos EUA a estrutura familiar européia. A miscigenação era pecado, porque era sinal de que havia ocorrido traição no casamento. A criança mestiça nascia duplamente estigmatizada. O casamento inter-racial só foi tornado legal há 30 anos. Vai levar ainda um tempo até a sociedade americana ser tão miscigenada quanto a brasileira.



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