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O TEATRO DA VIDA
O carnaval e o menino
CARLOS HEITOR CONY
Colunista da Folha
"No grande teatro da vida/
vão levar mais uma vez/ a revista colossal:/ pierrô, arlequim, colombina/ vão a preços
populares/ repetir o carnaval."
Taí a quadrinha de antiga, eu
era menino e esperava o carnaval com certo temor, medo dos
mascarados e, ao mesmo tempo, vontade de ser um deles.
Até que fui -e não apenas
durante o carnaval. Grudei na
cara várias máscaras -e se
não obtive poder e glória, ao
menos sobrevivi no meu canto,
fazendo um tipo de carnaval a
meu modo, véspera de cinzas.
Já encarei de tudo. Desde os
retiros espirituais no seminário
(segundo as santas regras de
Santo Afonso Maria de Ligório), até o retiro forçado na cela da Polícia Especial.
Também fui a outros folguedos. Para opróbrio dos meus
descendentes, saí de morcego
assustando outras crianças em
Paquetá. Minha mãe havia feito complicada fantasia de chinês (ou japonês, dava na mesma), cuja atração era o chapéu
de cartolina, em óbvio feitio de
chapéu de chinês.
Tomaram meu silêncio como
aprovação. Suei frio ao me
imaginar com aquele chapéu,
mas aí o meu irmão virou a
mesa, ele ia sair de reles marinheiro americano, não era bem
uma fantasia mas um quebra-galho carnavalesco, urinou
em cima do meu chapéu chinês.
Não havia tempo para a fabricação de um artefato elaborado como aquele. O pai
deu-lhe safanões por conta do
chapéu e de outras patifarias
genéricas e acumuladas.
Minha mãe foi ao armarinho, comprou pano preto, a
horrível máscara que cheirava
a papelão e a cola -e assim
passei e passeei os três dias pelas ruas cheias de sol de Paquetá, dando susto nas crianças
que conhecia e evitando aquelas que não conhecia, podiam
ser mais fortes do que eu e aí o
sovado seria eu.
Quando a tarde caía, botava
a máscara para trás da cabeça,
sentindo-me amaldiçoado,
perguntando-me sem resposta:
quem foi o cretino que inventou essas coisas? Em casa, queriam saber se eu havia gostado.
Respondia que sim.
No rádio, tocavam as músicas do ano, o grande teatro da
vida, o pierrô, o arlequim, a
colombina a preços populares
-o pai não achava os preços
tão populares assim. E numa
madrugada ele me acordou e
me levou até a ponte onde chegava a última barca trazendo
os escombros, mutilados pedaços de um rancho que voltava
do Rio. Os fogos-de-bengala,
ainda vivos e esverdeados, iluminavam as espumas que vinham morrer na praia dos Tamoios. As lanternas de vidro
colorido refletiam-se nas cabeleiras empoadas dos mestre-salas.
Ao pisar terra firme, o rancho
renascia de seu cansaço e se
arrastava uma vez mais na
marcha-hino que louva a ilha,
"Paquetá é um céu profundo/
que começa neste mundo/ mas
não sabe onde acabar". O ritmo era mais lento e as luzes
ficavam mais tristes dentro da
madrugada. Longe, o faroleiro
do Xeréu apagava seu facho
vermelho: era outro dia.
Vestia o morcego outra vez, a
máscara com cheiro de papelão
e cola, e eu sozinho, eu-morcego, batendo as ruas cheias de
sol, encontrava outros morcegos, era uma espécie de fantasia oficial dos meninos de Paquetá.
E sentia frio na espinha
quando esbarrava com uma
caveira, de camisola branca e
encardida, a cruz preta nas
costas, devia ser um garoto
igual a mim, mas nunca se sabe, e esta dúvida me perseguia
a tarde inteira, por que botam
caveiras nas ruas do carnaval?
E eu não entendia o grande
teatro da vida (tampouco o entendo agora) nem o pierrô com
seu branco rosto banhado de
luar. E quando tirava a máscara, ela estava molhada de suor,
um suor tão salgado e meu que
parecia lágrima.
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