São Paulo, quinta, 24 de dezembro de 1998

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INCULTA & BELA
"La torre pendente"

PASQUALE CIPRO NETO
Colunista da Folha

Se um dia você for a Pisa, na Itália, é claro que vai querer ver a bendita torre. Apesar de haver uma infinidade de placas que indicam como chegar lá, talvez você se perca e precise pedir a alguém que indique o caminho das pedras, ou melhor, da torre.
Torre em italiano é torre mesmo. Mas em Pisa normalmente não basta dizer "la torre". Torres, na Itália, há várias. Os habitantes de Pisa chamam a bela e torta torre de "la torre pendente".
Em português e em italiano, "pendente" é "o que pende". Trata-se de adjetivo formado a partir de verbo.
A terminação "-nte", originária do particípio presente latino, entra na formação de adjetivos e substantivos.
Em geral, esses substantivos e adjetivos indicam o agente do processo que o verbo expressa. Pedinte é quem pede, falante é quem fala, distante é o que dista, corrente é o que corre, ouvinte é quem ouve. E, voltando à torre de Pisa, pendente é o que pende.
Pois bem, acostumamo-nos tanto a usar determinadas palavras que "esquecemos" seu significado literal.
Por que dizemos que alguém fala "fluentemente" determinada língua estrangeira?
Fluentemente deriva de fluente, que deriva de fluir. Fluir significa "correr em estado fluido", como fazem os líquidos, por exemplo.
Metaforicamente, as palavras fluem, ou seja, saem da boca como água de chuva. Isso, é claro, se a pessoa for fluente na tal língua.
Lembra que um dia você teve de decorar os nomes dos afluentes do Amazonas, sem que lhe explicassem por que os afluentes são afluentes?
Se fluente é o que flui, afluente é o que aflui, do verbo afluir. Vamos ao "Aurélio": afluir é "correr para". O rio afluente nada mais é do que aquele cujas águas correm para as de outro, aumentando-lhes o volume.
E influente? É o que influi, é claro. E influir é "fazer fluir para dentro de", que, ao pé da letra, é o que faz quem influi.
Não parece difícil agora entender o significado literal de "bastante". Ao pé da letra, bastante é "o que basta".
É por isso que gramáticos puristas não aceitam "bastante" como sinônimo de "muito". Dizem eles que só se pode usar "bastante" como sinônimo de "suficiente": "Não há livros bastantes"; "Não há livros suficientes".
Parece exagero condenar o emprego de "bastante" como sinônimo de "muito". O uso e os dicionários já consagraram essa equivalência.
O detalhe é que, quando sinônimo de "muito", "bastante" deve seguir o mesmo processo de concordância: "O time perdeu muitas oportunidades"; "O time perdeu bastantes oportunidades".
Rara no Brasil, a forma flexionada de "bastante" é comum em Portugal. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras

E-mail: inculta@uol.com.br



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