São Paulo, domingo, 25 de abril de 2004

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CIDADE PARTIDA

Urbanistas e historiadores vêem planejamento como causa da divisão social na ocupação de São Paulo e do Rio

Segregação entre ricos e pobres tem raízes históricas

ANTÔNIO GOIS
DA SUCURSAL DO RIO

A imagem da cidade partida em duas classes parece recente quando se analisam os conflitos na favela da Rocinha (zona sul do Rio), que fizeram o carioca evitar a circulação, principalmente nas duas últimas semanas, em áreas próximas de favelas. Um mergulho na história urbana das duas mais importantes cidades brasileiras mostra, no entanto, que essa divisão, além de ter raízes históricas, foi também planejada.
Autores de livros sobre a história urbana do Rio e de São Paulo lembram que a separação do espaço das duas cidades entre ricos e pobres teve quase sempre como objetivo facilitar a circulação de bens e pessoas, ainda que, para isso, fosse necessário retirar, mesmo que à força, a população que estava em áreas nobres.
"A população mais pobre nunca foi o foco do planejamento urbano no Rio. A cidade já nasceu segregada. Dizer que houve falta de planejamento é um mito. O principal interesse era aumentar a circulação de pessoas e mercadorias. O problema é que agora os conflitos estão atrapalhando a circulação", diz Fania Fridman, pesquisadora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora do livro "Donos do Rio, em Nome do Rei".
Ela cita um exemplo histórico da segregação carioca: a chegada da família real ao Rio, no início do século 19. Para abrigar a corte de dom João 6º, foi necessário desapropriar cortiços e aterrar áreas no caminho que levava o rei de sua residência (na Quinta da Boa Vista, zona norte) ao centro. Para estimular a ocupação desses terrenos pela elite, o Estado deu incentivos fiscais para famílias de nobres que quisessem construir suas casas pelo caminho.
A formação urbana de São Paulo, nesse ponto, não difere da carioca. A crônica da expulsão dos pobres paulistanos para a periferia é tão evidente que aparece na obra de Adoniran Barbosa (1910-1982), como na canção "Despejo na Favela".
"As intervenções estavam vinculadas à idéia de renovações urbanas que excluíssem as áreas de baixa renda da região central. Já no final do século 19, houve uma lei que proibia expressamente a criação de cortiços no perímetro central", afirma o arquiteto e vereador do PT de São Paulo Nabil Bonduki, autor de "Origens da Habitação Social no Brasil".
A professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP Maria Ruth Amaral de Sampaio diz que o Estado também deu incentivos a empresários que construíssem cortiços na periferia.
Bonduki cita como exemplos de transformação de espaços ocupados por pobres a abertura da praça da Sé (antes ocupada pela população de baixa renda) e o alargamento da rua Libero Badaró (onde ficavam prostíbulos).
Se o processo de exclusão urbana teve explicação semelhante no Rio e em São Paulo, a distribuição da população marginalizada acabou sendo diferenciada.
Para o economista Carlos Lessa, presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e autor do livro "O Rio de Todos os Brasis", a geografia carioca e sua formação econômica explicam por que as favelas foram crescendo nos morros ao lado dos bairros nobres, diferentemente do que ocorreu em São Paulo, onde houve concentração nas periferias.
"A tendência no Rio era o melhor terreno ser ocupado pela elite, enquanto o dispensável ficava disponível. Como a cidade é espremida entre o mar e a montanha e isso dificulta o deslocamento, os pobres construíram suas habitações próximas da elite", diz. O economista não concorda com a idéia da cidade partida no caso do Rio: "É verdade que a cidade nunca foi capaz de incluir os pobres do ponto de vista da cidadania, mas essa população excluída sempre teve uma relação simbiótica com a população rica. O bairro onde mora a pobreza sobrevive em grande parte prestando serviços à elite. Não é à toa que a maior favela do Rio, a Rocinha, fica ao lado de bairros com as maiores renda per capita, como São Conrado e Gávea".
Para Lessa, essa relação simbiótica ainda hoje é chave para entender a questão da violência. "Você não consegue explicar o poder do tráfico sem explicar o poder de compra do asfalto", diz. Ele afirma que as tentativas recentes de urbanização das favelas cariocas foram bem-sucedidas ao melhorar as condições de vida em algumas áreas, mas não foram capazes de eliminar o poder do tráfico.
Maria Sampaio afirma que a desigualdade urbana também ajuda a entender a violência em São Paulo. "Há ruas onde você pensa estar numa capital de primeiro mundo, enquanto, ao lado, populações carentes jogam bolas nas ruas em troca de moedas. Quando isso se junta ao desemprego, criam-se condições mais propícias para o aumento da violência".


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