São Paulo, sábado, 25 de abril de 1998

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DATA VENIA
Presos aidéticos

AURY LOPES JUNIOR

O sistema penitenciário brasileiro está em colapso, fruto de uma sucessão de erros que culminou por retrocedê-lo à Idade Média. As cruéis e desumanas condições a que são submetidos os reclusos são fato notório. Isso gera certa dose de indiferença; pouco é feito para minorar esse sério problema.
A pena de prisão está "falida", e é uníssona a opinião, na comunidade jurídica e na sociedade, de que aplicar penas alternativas (multa, prestação de serviços etc.) deve ser prioridade. Infelizmente, ainda não é essa a nossa realidade jurídica e legislativa. As possibilidades legais são limitadas e as sentenças nesse sentido também.
Nesse vergonhoso panorama, há um dado ainda mais cruel, que é o grande número de presos aidéticos (contaminados, inclusive, no próprio centro penitenciário), muitos já em estado terminal, agonizando no cárcere sem a menor piedade do poder público.
Uma sentença da Audiência Provincial de Madri tratou de forma louvável o tema. Seria aconselhável que tal exemplo motivasse nossos juízes. A fundamentação dos magistrados espanhóis atinge o ponto nevrálgico da questão.
Segundo o tribunal em tela, os presos com enfermidades incuráveis (Aids, câncer, alguns tipos de hepatite etc.) devem ser soltos quando for diagnosticada a grave doença, para que "vivam dignamente" o resto de seus dias.
Prolongar o cativeiro até a morte resulta cruel e desumano. Ademais, desvirtua por completo a própria natureza da pena privativa de liberdade: a reinserção social. Considerou-se desnecessário que o preso tenha um prognóstico de morte a curto ou médio prazo; nem o fato de ser o condenado multireincidente serve para obstar o benefício da liberdade condicional ou da prisão domiciliar.
Outro aspecto ressaltado na sentença é que as condições oferecidas no presídio facilitam infecções e patologias oportunistas. Concluem os magistrados "que é absurdo manter presa uma pessoa gravemente enferma, com o objetivo constitucional de reinseri-la, se unicamente sairá do cárcere dias antes de morrer".
O sistema jurídico brasileiro, muitas vezes, contempla normas de elogiável alcance, mas de reprovável e deficitária aplicação. A lei 7.210/84, que disciplina a execução penal, é uma ilustre desconhecida em face da realidade de nossas prisões. Mais uma prova desse completo descumprimento resulta da interpretação restritiva de que tem sido vítima o art. 117, que prevê a possibilidade de prisão domiciliar para o condenado acometido de doença grave.
No caso de presos aidéticos, sistematicamente os tribunais brasileiros têm negado tal benefício, usando frágeis argumentos, sem atentar para a crueldade e o elevado custo dessas decisões. É cada dia mais comum encontrar nas galerias verdadeiros "cadáveres ambulantes", em um ambiente promíscuo, sem as mínimas condições de higiene ou os mais elementares cuidados médicos.
O caos no sistema carcerário e a gravidade da situação dos presos aidéticos exige mudança de mentalidade, para que o frívolo e cínico positivismo dê lugar a um tratamento humano e responsável.


Aury Celso Lima Lopes Junior é professor de direito penal e processual penal da Universidade do Rio Grande (RS) e doutorando em direito processual na Universidade Complutense de Madri



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