São Paulo, quinta, 25 de junho de 1998

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INCULTA & BELA
"Falamos desde Paris'

PASQUALE CIPRO NETO
Colunista da Folha

As transmissões esportivas continuam fornecendo material para discutir a língua.
Sei muito bem o que é fazer rádio e TV ao vivo. Não é nada fácil. Muitas das bobagens que ouvimos são resultado da pressão natural imposta pela circunstância, e não fruto de ignorância ou despreparo.
Por falar em "ao vivo", você já notou que no canto da "telinha" sempre aparece a palavra "vivo"?
As desculpas são várias. A mais comum é o velho problema do espaço ("ao vivo" não cabe no canto da tela).
Mas nada me tira da cabeça que isso é resultado do advento das antenas parabólicas e da TV a cabo.
Com a chegada da CNN -americana-, em cuja imagem se vê a palavra "live", as emissoras brasileiras acharam que, se a expressão inglesa tem apenas uma palavra, a portuguesa pode muito bem ter também uma palavra só.
É bom ser justo e dizer que a TV Cultura, que também usava o bendito "vivo" -fato vergonhoso para uma emissora educativa-, corrigiu o problema, a partir de sugestão que fiz à então diretora de programação, Beth Carmona, que imediatamente ordenou o emprego da forma correta.
Assim como se diz que se faz algo "aos poucos", "aos trancos e barrancos", "às pressas", "às vezes", só se pode dizer que se transmite algo "ao vivo". Em português, as expressões adverbiais costumam ser introduzidas por preposição (ao=a+o; à=a+a).
Mas a pérola de hoje é um caso de espanholismo. Trata-se do bendito "desde". É comum locutores esportivos abrirem a transmissão com algo como "Falamos desde Paris", "Transmitimos desde o autódromo de Monza".
Para falar desde Paris, o locutor, que, quando diz isso, não está em Paris, precisa ter superpulmões para começar a falar em Paris e, depois de sabe Deus quantos quilômetros, continuar matraqueando.
Em espanhol, "desde" pode indicar procedência, origem. Em português, não. A preposição cabível é "de": "Falamos de Paris", "Transmitimos do autódromo de Monza".
Alguém pode dizer que a frase "Falamos de Paris" é ambígua. Paris pode ser o lugar em que se está ou o assunto. O contexto certamente desfaria a ambiguidade.
Uma fábrica de telefones celulares está fazendo uma propaganda, cujo texto diz: "O mundo inteiro só fala nele".
Talvez tenha havido a intenção de criar a ambiguidade. Como se pode falar de algo ou em algo, um dos sentidos da frase é que o telefone é o único assunto das pessoas.
Mas o outro sentido pretendido esbarra num problema de regência: as gramáticas dizem que se fala ao telefone, e não no telefone. Para a gramática normativa, a frase tem apenas um sentido. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras


E-mail:inculta@uol.com.br



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