São Paulo, sábado, 25 de julho de 1998

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DATA VENIA
Os menores e a sociedade

JOÃO BATISTA SARAIVA
Moacyr Scliar relata uma história contada por Simone de Beauvoir na qual uma mulher, maltratada pelo marido, arranjara um amante, a cuja casa ia uma vez por semana. Para visitar o amante, tinha de atravessar um rio. Podia fazê-lo por barca ou por uma ponte.
Ocorre que nas vizinhanças havia um conhecido assassino, motivo pelo qual a mulher evitava a ponte. Um dia demorou-se mais do que de costume. Quando chegou ao rio, o barqueiro não quis levá-la, dizendo que seu expediente tinha terminado. A mulher pediu ao amante que a acompanhasse até a ponte, mas este recusou, alegando cansaço. A mulher resolveu arriscar e o assassino a matou.
Simone pergunta: quem é o culpado? O barqueiro burocrata? O amante negligente? A própria mulher, por ser adúltera? E comenta: "Em geral, as pessoas culpam um desses três, mas ninguém se lembra do assassino. É como se fosse normal um assassino assassinar".
Retorna com força a idéia de reduzir a idade de responsabilidade penal para fazer imputáveis jovens a partir de 16 anos (há quem defenda ainda menos). Essa tese, em princípio, faz-se inconstitucional. O direito insculpido no art. 228 da Constituição (que fixa em 18 anos essa idade) é cláusula pétrea, de inegável conteúdo de "direito e garantia individual", referido no art. 60 da Carta como insuscetível de emenda.
Demais, a pretensão de redução viola o disposto no art. 41 da convenção das Nações Unidas sobre os direitos da criança. O texto da convenção se faz lei interna de caráter constitucional, à luz do parágrafo 2º do art. 5º da Constituição.
Mas a questão de fundo não é essa. Tangenciando a sempre lembrada tese do discernimento -absolutamente descabida, pois é notório que se trata de decisão de política criminal a fixação etária-, tal procedimento vem na contramão da história; vide a recente reforma do Código Penal espanhol, que elevou agora a responsabilidade penal para 18 anos.
A questão da responsabilização do adolescente infrator e a eventual sensação da impunidade que é passada para a opinião pública não decorre do texto legal nem da necessidade de sua alteração -mesmo se admitindo não ser o Estatuto da Criança e do Adolescente uma obra pronta e acabada.
Ela se funda na incompetência do Estado para executar as medidas socioeducativas previstas na lei, na inexistência ou insuficiência de programas de execução de medidas em meio aberto e na carência do sistema de internamento (privação de liberdade), denunciado diariamente pela imprensa. São raras e honrosas as exceções.
Como no caso do homicídio da mulher adúltera, discute-se o crescimento da violência infantil -esquecendo-se de que tem como causas desemprego, miséria, deseducação e desagregação familiar-, afirma-se a necessidade de redução da responsabilidade penal -omitindo que o sistema penal é caótico e pretendendo lançar jovens de 16 anos no convívio de criminosos adultos- e não se fala do verdadeiro vilão: a ausência de comprometimento do Estado e da sociedade com a efetivação das propostas trazidas pelo ECA.
Enquanto se despende energia vital nessas discussões, permanece ignorada a questão fundamental. Basta dar meios de execução às medidas que o ECA propõe que se alcançarão os resultados que toda a sociedade afirma desejar.


João Batista Costa Saraiva, 39, é juiz de Direito da Infância e da Juventude em São Paulo



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