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DATA VENIA
Os menores e a sociedade
JOÃO BATISTA SARAIVA
Moacyr Scliar relata uma história contada por Simone de Beauvoir na qual uma mulher, maltratada pelo marido, arranjara um
amante, a cuja casa ia uma vez por
semana. Para visitar o amante, tinha de atravessar um rio. Podia fazê-lo por barca ou por uma ponte.
Ocorre que nas vizinhanças havia um conhecido assassino, motivo pelo qual a mulher evitava a
ponte. Um dia demorou-se mais
do que de costume. Quando chegou ao rio, o barqueiro não quis
levá-la, dizendo que seu expediente tinha terminado. A mulher pediu ao amante que a acompanhasse até a ponte, mas este recusou,
alegando cansaço. A mulher resolveu arriscar e o assassino a matou.
Simone pergunta: quem é o culpado? O barqueiro burocrata? O
amante negligente? A própria mulher, por ser adúltera? E comenta:
"Em geral, as pessoas culpam um
desses três, mas ninguém se lembra do assassino. É como se fosse
normal um assassino assassinar".
Retorna com força a idéia de reduzir a idade de responsabilidade
penal para fazer imputáveis jovens
a partir de 16 anos (há quem defenda ainda menos). Essa tese, em
princípio, faz-se inconstitucional.
O direito insculpido no art. 228 da
Constituição (que fixa em 18 anos
essa idade) é cláusula pétrea, de
inegável conteúdo de "direito e
garantia individual", referido no
art. 60 da Carta como insuscetível
de emenda.
Demais, a pretensão de redução
viola o disposto no art. 41 da convenção das Nações Unidas sobre
os direitos da criança. O texto da
convenção se faz lei interna de caráter constitucional, à luz do parágrafo 2º do art. 5º da Constituição.
Mas a questão de fundo não é essa. Tangenciando a sempre lembrada tese do discernimento
-absolutamente descabida, pois
é notório que se trata de decisão de
política criminal a fixação etária-, tal procedimento vem na
contramão da história; vide a recente reforma do Código Penal espanhol, que elevou agora a responsabilidade penal para 18 anos.
A questão da responsabilização
do adolescente infrator e a eventual sensação da impunidade que é
passada para a opinião pública
não decorre do texto legal nem da
necessidade de sua alteração
-mesmo se admitindo não ser o
Estatuto da Criança e do Adolescente uma obra pronta e acabada.
Ela se funda na incompetência
do Estado para executar as medidas socioeducativas previstas na
lei, na inexistência ou insuficiência de programas de execução de
medidas em meio aberto e na carência do sistema de internamento
(privação de liberdade), denunciado diariamente pela imprensa.
São raras e honrosas as exceções.
Como no caso do homicídio da
mulher adúltera, discute-se o crescimento da violência infantil -esquecendo-se de que tem como
causas desemprego, miséria, deseducação e desagregação familiar-, afirma-se a necessidade de
redução da responsabilidade penal -omitindo que o sistema penal é caótico e pretendendo lançar
jovens de 16 anos no convívio de
criminosos adultos- e não se fala
do verdadeiro vilão: a ausência de
comprometimento do Estado e da
sociedade com a efetivação das
propostas trazidas pelo ECA.
Enquanto se despende energia
vital nessas discussões, permanece
ignorada a questão fundamental.
Basta dar meios de execução às
medidas que o ECA propõe que se
alcançarão os resultados que toda
a sociedade afirma desejar.
João Batista Costa Saraiva, 39, é juiz de Direito da Infância e da Juventude em São Paulo
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