São Paulo, sábado, 25 de julho de 1998

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LETRAS JURÍDICAS
Remédio demorado

WALTER CENEVIVA
da Equipe de Articulistas

Acusações, diligências, manchetes, segundos televisivos continuam dominando as preocupações do cidadão brasileiro, depois que a Schering foi denunciada sob alegação de ter colocado duas toneladas de farinha em pílulas comercializadas como anticoncepcionais. Está faltando insistir numa pergunta fundamental: por que a violação gravíssima dos direitos dos consumidores demorou tanto tempo para despertar o interesse das autoridades?
Em raciocínio que mergulha fundo no óbvio, parece que só foi possível chegar a uma situação tão perigosa para a saúde da população porque algumas autoridades têm sido incompetentes, omissas ou mesmo corruptas. Ou, ao menos, porque a lei tem lacunas. O raciocínio vale para distinguir quem é quem no rol dos bons e dos maus, entre produtores estrangeiros de remédios, dominadores do mercado e os nacionais.
A violação do direito do consumidor é a ponta do iceberg. O universo da criminalidade, com os entes públicos e privados que dela participaram, surge envolvido com a mesma e dolorosa questão: qual o porquê de tanta demora? Por que a Abifarma (Associação Brasileira da Indústria Farmacêutica) acordou somente agora para manifestar "enorme preocupação" com medicamentos falsificados ou adulterados? Não sabia de nada?
Agora se diz sem ressalva que laboratórios estrangeiros abusaram porque aqui a legislação é mais branda, e a fiscalização, próxima da inexistência. Tem sido frequente na literatura jurídica a alusão a remédios proibidos ou restringidos em seus países de origem, no Primeiro Mundo, livremente vendidos em nações agora chamadas emergentes, em eufemismo elegante. Emergentes, talvez, mas submersas na exploração de medicamentos impróprios e, possivelmente, em pesquisas feitas à custa de seus cidadãos, com e sem o conhecimento deles.
Arrombada a porta, as autoridades querem pôr a tranca. Sem puxar a brasa para a sardinha do jornalismo, é preciso reconhecer que, sem o alarido da mídia, os poderosos interesses envolvidos certamente conseguiriam abafar o escândalo. O escândalo, tomado em si mesmo, gera injustiças. Mas, num caso como o dos remédios, não há modo de ser condescendente. Afinal, estão em jogo a saúde e a vida das pessoas, garantidas pelo documento legislativo mais importante para o cidadão nacional: o artigo 5º da Constituição, o grande direito individual na democracia.
A mídia acertou na mosca, forçando as autoridades a se mexer. E, justiça seja feita, a contar do ministro José Serra, que nem é médico, nem biólogo, mas mostrou sensibilidade, detonando uma série de medidas necessárias.
Não se deve ficar, porém, nas providências de curto prazo. Será imprescindível sistematizar a vigilância em empresas daqui e de fora para continuar, quando passar o brilho efêmero da televisão, dos microfones e o espanto das manchetes.
Em um universo feito de tantas violações, é admissível uma sucessão infinda de ilações e perguntas, justas e injustas. Exemplo: a Schering estaria fazendo experiências com a farinha, à custa da população? Talvez não, mas Serra acertou ao puni-la. Só errou ao dizer que os dirigentes da Schering tinham farinha na cabeça, ao responder às críticas deles, de que agia por motivo político. Na sua incompetência, imprudência ou arrogância, o que esses dirigentes mostraram, na cabeça, nem é branco nem perfumado. Cheira mal.



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