São Paulo, domingo, 25 de agosto de 2002

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CIDADANIA

Convivência com diferentes realidades integra currículo da Escola Waldorf de São Paulo, que patrocinou a idéia

Alunos de classe média vivem 5 dias dentro de favela

AURELIANO BIANCARELLI
DA REPORTAGEM LOCAL

"Quando olhei aquele lugar, fiquei desesperada. Esse lugar não tem jeito... Aí fui vendo a Ana, que vive procurando classes para ensinar, o Dão, todo dia separando o lixo reciclável... Eles tinham muita força. Vou indo embora com uma grande vontade de mudar isso."
Camila, a autora desse relato, está entre os 11 alunos da Escola Waldorf de São Paulo que moraram durante cinco dias na comunidade Horizonte Azul, uma chácara encravada no meio das favelas e bairros mais pobres da zona sul. Eles estão no terceiro colegial e têm entre 17 e 18 anos.
Na tarde da sexta-feira, os estudantes, mochilas nas costas, tomaram o ônibus em direção ao terminal Santo Amaro. Retornavam ao conforto e segurança da Vila Olímpia, na zona oeste, e dos bairros vizinhos à escola, onde moram. Entre suas casas e a Horizonte Azul são cerca de 30 quilômetros, dez deles pela Estrada do M"Boi Mirim, uma artéria que leva a bairros violentos onde o Jardim Ângela, campeão de homicídios, é apenas o meio do caminho.
Na noite da quinta-feira, os estudantes da Waldorf dividiram uma roda com adolescentes do bairro e passaram duas horas trocando impressões. No círculo estavam mais de 20 jovens moradores do bairro, funcionários e voluntários da comunidade Horizonte Azul e integrantes do grupo Sou da Paz.
A conversa na roda começou com versículos do apóstolo Tiago lembrando que "a fé sem obras para nada aproveita".
A regra é fazer, participar. Dentro da filosofia do educador Rudolf Steiner (1861-1925), seguida pelas escolas Waldorf do mundo todo, a convivência do aluno com diferentes realidades faz parte do currículo. "A idéia é formar um cidadão livre, que pode ir para o mundo com conhecimento, que tem a oportunidade de conhecer o outro", explica Fabiana Martins, 31, professora de matemática e tutora daquela turma do Waldorf.
Durante cinco dias, os estudantes participaram de quase todas as atividades da comunidade, ajudando na creche, na escola, na biblioteca, na cozinha, na horta, na marcenaria e na coleta de lixo.
Nos relatos daquela noite, a dedicação de seu Dão em separar plásticos e vidros do lixo pobre do bairro era citada como modelo pelos alunos. Outro exemplo era dona Ana, que há anos alfabetiza adultos em sua garagem, mesmo nos períodos em que a prefeitura corta o pagamento. "Eles são o contraponto da desesperança", disse a professora Lua Nogueira, que acompanhou os estudantes.
Na roda de discussão, Juliana Oliveira conta que seu dia começou na cozinha, "as panquecas deram errado, à tarde, no berçário as crianças estavam agitadas, um bebê chegou machucado e chorava muito". "É uma experiência que vou levar comigo."
"Aos poucos as crianças foram chegando mais e mais, pediam para eu empurrá-las no balanço. Elas me sugaram bastante, eu me diverti muito", relata Marcelo.
Giuliano andou pela chácara, passou pela creche, parou na marcenaria. "Faltava madeira para fazer carrinhos novos, ficamos lixando os que estavam prontos."
Mauro deu uma ajudinha no suco. "Foram uns 20 litros. Depois peguei uns dados com o João da horta." João e Dão já fazem parte dos projetos dos alunos da Waldorf, vão assessorar a horta e implantar a coleta seletiva na escola, conta Ricardo.
Nathalia ficou na pré-escola, depois na biblioteca, fez fichas e ensinou a fazer pesquisa. "A gente ficou mais perto das coisas que só ouvíamos falar."
Juliana Mendes passou a tarde no berçário. "As criancinhas vinham abraçando, são muito carentes, a gente dava de comer para quatro ao mesmo tempo."
Às vezes as falas tinham um tom triste de despedida. "Passei o dia olhando as crianças com vontade de chorar, porque sabia que tinha de ir embora", conta Bruna.
Luis Paulo ensinou de futebol a artes marciais. "Um molequinho perguntou, "professor, você vai esquecer a gente quando for embora?" Eu não sabia o que dizer, mas sei que não vou esquecer."
Uns colegas lamentaram a ausência de Igor, que por compromissos não passava a noite ali.
Na roda, o auxiliar de escritório Vanderlei Rafael, 20, o Pezão, veio de Piraporinha, em Santo Amaro, convidado por um amigo. Meio sem jeito, pede desculpas antes de perguntar. "Como é que vocês se sentem sabendo que estão numa boa e nós aqui na pior?"
Os estudantes se calam. Uma das professoras, Lu, assume a palavra. "As realidades são diferentes, as pessoas são iguais. A gente se sentiu abraçados."
Pezão ganha R$ 500 e sustenta um filho de dois anos e os pais. Na saída, comenta. "Ninguém tem culpa de nascer rico ou pobre, mas muitos podem fazer alguma e não fazem nada."
Júnior, 17, do grupo "Sou da Paz", estava inconformado com a partida dos alunos. "Uma semana não basta", dizia. "Vocês são normais como a gente. Nós temos certos preconceitos porque eles têm mais dinheiro que a gente, mas conhecendo melhor vemos que esse preconceito não existe. Espero que vocês façam alguma coisa por nós. Vou sentir muita falta dessa convivência."
Evelise, 20, moradora do bairro, pede que alguém da Escola Waldorf conte a rotina de um dia. "Depois das aulas, vou para o cursinho, dois dias à tarde tenho inglês, janto, depois faço as lições e estudo", relata Ricardo. Uma garota na roda comenta: "Mas é só isso que vocês fazem?"
Bruna relata que é quem acorda as irmãs. "A gente faz rodízio, uma arruma a casa, outra faz o almoço, outra lava a louça."
Evelise, que passou a semana em contato com o grupo, conta que no início havia uma distância. "Depois a gente foi vendo que eles são normais, são como a gente, brincam como a gente brinca, riem como a gente ri."
Os adolescentes do bairro querem saber se haverá uma troca, eles passando uma semana na Vila Olímpia, participando das atividades. Fabiana diz que essa é uma idéia para ser amadurecida.
Ferreira, monitor da creche, defende a idéia. "Para muita gente aqui, existem duas São Paulo. A nossa acaba na M"Boi Mirim."
É quase meia noite e os ônibus pelas ruas pouco iluminadas viajam em comboios. Ao longo dos dez quilômetros da M'Boi Mirim, além de postos fixos da PM, só cruzam com uma viatura policial.


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