São Paulo, quinta, 25 de setembro de 1997.



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Peça de Gil Vicente leva a uma viagem ao inferno

FRANCISCO ACHCAR
especial para a Folha

Representada pela primeira vez em 1517, a peça de Gil Vicente faz parte de uma trilogia em que assistimos a um desfile de almas de mortos prestes a embarcar para a eternidade.
Os títulos das peças indicam os possíveis destinos da viagem: Inferno, Purgatório e "Glória" (paraíso).
Na primeira peça, os mortos são confrontados com o Diabo, que lhes apresenta, com ironia e humor, as razões pelas quais devem embarcar no seu navio, que vai para a "terra perdida". Todos resistem e se dirigem ao Anjo, que guarda a barca do paraíso. O Anjo, em tom solene, mostra a quase todos que seu caminho é o inferno, por causa da vida que levaram.
E quem são os mortos? São figuras alegóricas (representam classes ou categorias sociais), como o Fidalgo, arrogante e falso; o Onzeneiro (usurário, espécie de banqueiro), que emprestava dinheiro a juros, numa prática então condenada pela Igreja; o Sapateiro (o artesão de outrora, que hoje corresponderia a um misto de industrial e comerciante), ladrão de seus fregueses; o Frade, que vem acompanhado de sua amante; a Alcoviteira (caftina), que fornecia moças para homens de dinheiro e poder; o Judeu, contra quem, refletindo preconceito da época, até o Diabo demonstra prevenção; o Corregedor (juiz), pomposo e corrupto; o Procurador, desonesto como o juiz; o Enforcado, que acreditava que a forma por que morrera lhe garantiria a ida para o céu...
Só são aceitos pelo Anjo o Parvo (idiota), camponês explorado e sofredor, e quatro Cavaleiros que morreram em defesa da fé de Cristo.
Ideologicamente, Gil Vicente tem um pé na Idade Média. Ele satiriza o mundo a sua volta, com suas bruscas transformações, seu "progresso", sua "decadência", sua "desordem" -e idealiza, em contraste, o ordenado mundo medieval perdido. Mas, como homem de sua época, ele é libertário, o que o faz, por exemplo, defender os judeus contra absurdas acusações do clero católico.
Estilisticamente, Gil Vicente é o último representante da tradição teatral da Idade Média, totalmente estranha ao teatro clássico, que seus contemporâneos tentavam reviver, e não adota qualquer das novidades renascentistas que começavam a circular em Portugal.
No desfile de almas do "Auto da Barca do Inferno" temos um amplo quadro crítico da sociedade portuguesa da época, apresentado em versos de enorme encanto -versos ágeis e refinados que não se afastam da linguagem falada, em seus vários registros.
Por tais motivos, Gil Vicente é considerado, por críticos de importância, como o poeta mais original de Portugal e o maior dramaturgo europeu de seu tempo.


Francisco Achcar é professor de Língua e Literatura Latina na Unicamp



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