São Paulo, domingo, 26 de março de 2000


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GILBERTO DIMENSTEIN
O escárnio não compensa

Os detalhes sobre os gastos milionários com decoração da ex-primeira-dama Nicéa Camargo quando morou em Nova York, divulgados na semana passada, apenas reforçaram a sensação de que a família Pitta não tinha como explicar seus gastos.
A explicação era, no mínimo, constrangedora -a fonte de renda viria do empresário Jorge Yunes que, magnânimo, nem fazia questão de receber o dinheiro de volta.
Para piorar, o magnânimo doador tinha interesses diretos e indiretos na administração municipal, além de envolvimento em caixinha de campanha eleitoral.
À medida que se divulgaram novos detalhes sobre como viviam os Pitta, com seus gastos dentro e fora do Brasil, assistíamos a um festival de escárnio.
O escárnio pessoal era a cereja do bolo do escárnio público, com a cidade tomada por redes de corrupção e abandonada administrativamente. Conformada, a população via o festival, na expectativa de que, como de costume, não resultasse em nada.
A principal cidade da América Latina, um dos centros econômicos mundiais, assemelhava-se a uma dessas indigentes republiquetas movidas ao folclore da impunidade. Só assim se entende ser governada por alguém incapaz de explicar de onde vem sua fonte de renda -e, quando tenta, sai-se pior ainda.
Anteontem, um juiz mostrou que a sociedade cria mais e mais anticorpos contra a esculhambação pública.

Mesmo que Celso Pitta recupere seu cargo, o estrago (ou melhor, o conserto) já está feito.
O pedido de afastamento fora feito por sete promotores da Cidadania do Ministério Público, qualificando o empréstimo como "presente" de alguém que empregou parentes na prefeitura, o que é pouco, vamos reconhecer, e tinha interesses em mudanças de zoneamento, o que é muitíssimo.
O juiz Olavo Sá Pereira acatou a liminar, tirou o prefeito do cargo e, mais importante, deixou os experientes analistas políticos boquiabertos.
Imaginava-se que apenas um improvável processo de impeachment tiraria Pitta; não a Justiça.
Semelhante ao que ocorreu com Fernando Collor, mesmo os mais tarimbados políticos supunham que um presidente sairia do Palácio do Planalto, antes do final de mandato, apenas se adoecesse ou sofresse um golpe.
O ponto essencial: o Brasil é diferente. E diferente para melhor.
A tradicional ótica da sinistrose, estimulando a percepção de que nada prospera, de que a corrupção é, em regra, vitoriosa, está ultrapassada.
Pitta não está pagando apenas por seus tropeços -mas também e, especialmente, porque sua eleição já foi um grande tropeço articulado por Paulo Maluf.
Quebrou-se uma cidade para se eleger um candidato. Algo visto como normal na política, aceitável supostamente porque todos fazem. Mas uma delinquência.

O afastamento de Pitta é resultado de uma nova lógica -a lógica de uma sociedade que, graças à vivência democrática, está mais articulada, atenta, com suas instituições exercendo suas prerrogativas.
A decisão do juiz vai além do mérito técnico. É o reflexo de uma indignação geral, com os desmandos municipais, desvendados, em boa parte, pela imprensa e vocalizados por jovens promotores.
O Brasil está mais sofisticado e informado, com uma crescente classe média e maior acesso ao conhecimento -esse processo é particularmente acentuado em São Paulo.
Há uma desconexão brutal entre a sociedade paulistana, recheada de talentos, projetos financeiros, comerciais, artísticos, culturais e tecnológicos, e sua representação política, indigência de republiqueta.
É algo parecido a alguém vestir um terno elegante acompanhado de sandália havaiana.
Algum lado teria de sobressair -a republiqueta ou o talento cosmopolita.
Depois de vencer a eleição como venceu, Pitta não teve mais sossego, cercado de processos, que o impediram de dispor de seus recursos privados. Daí o tal empréstimo.
Mais tarde, ficariam expostos esquemas de corrupção que saíram do Executivo até o Legislativo. Fala-se, agora, o que todos suspeitavam: o processo de impeachment não prosperou porque os vereadores foram azeitados. E, segundo a família Pitta, com ajuda do próprio Yunes.
A decisão do juiz, anteontem, é mais um sinal de que o escárnio não compensa.

PS - Vou repetir nesta coluna o que escrevi semana passada, agora, reforçado pela decisão judicial: sou um otimista em relação a São Paulo.
Chegamos, de fato, ao fundo do poço, mas a sociedade está madura para dar uma virada, recuperando sua auto-estima.


E-mail: gdimen@uol.com.br


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