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INCULTA & BELA
"Eu se apavorei"
PASQUALE CIPRO NETO
Colunista da Folha
"Nós vamos se encontrar
no shopping." A frase é mais
do que comum em bocas de
todas as classes -incluída a
média, é óbvio.
Qual é o problema? "Nós" é
pronome da primeira pessoa.
"Se" também é pronome, da
terceira pessoa.
Falta uniformidade. O pronome reto "nós" exige o oblíquo "nos" ("vamos nos encontrar", na sintaxe brasileira, ou
"vamo-nos encontrar", na sintaxe rigorosamente lusitana).
Em linguagem familiar, ainda seria possível usar o brasileiríssimo "a gente" -aí, sim,
com o "se" ("a gente vai se
encontrar").
Voltando ao "vamos se encontrar", o que poderia explicar o uso do "se" nesses casos?
Em português -e em outras
línguas-, o "se" é um generalizador, um indeterminador.
Em "Alugam-se casas", "Precisa-se de operários", o pronome "se" funciona como indeterminador do executor do
processo verbal.
Tem-se, então, a clara idéia
de que realmente cabe ao "se"
esse papel de elemento genérico, uma espécie de "identidade coletiva". O "se" não é ninguém, mas ao mesmo tempo é
todo o mundo.
Pois bem. Na semana passada, a polícia prendeu os membros da quadrilha que teria
atacado o ator Gerson Brenner. Depois da discussão interna -quem atirou?-, a
confissão de um deles.
Ao explicar por que atirou, o
infeliz disse: "Eu se apavorei e
puxei o gatilho".
Imagino a reação das pessoas ao vê-lo (e ouvi-lo) pronunciar tal bobagem: "Além
de sacana, é analfabeto".
Isso deve ter sido o mínimo.
Não me cabe discutir o "sacana". Quanto ao "analfabeto",
a coisa é complicada.
Se tomarmos como referência o português padrão -a
chamada variante culta da
língua-, sem dúvida o acusado é analfabeto.
Mas não está sozinho. É do
povo brasileiro a expressão
"simbora", grafia livre de uma
espécie de interjeição com a
qual se convocam os presentes
para ir a outro lugar, para
sair do lugar em que estão.
E o que é esse "simbora", que
não tem grafia oficial, que nenhum dicionário registra, mas
que é absolutamente real?
Nada mais é do que a redução de "vamos se embora",
prova incontestável de que o
brasileiro mistura "nós" e "se".
Isso igualaria, linguisticamente, boa parte do povo brasileiro ao suposto autor do
disparo que feriu Brenner.
Afinal, o "erro" é o mesmo.
Na verdade, isso prova que a
questão precisa ser avaliada
com calma. Na língua culta,
ninguém aceitaria -nem deve aceitar- "vamos se embora" ou "eu se apavorei".
Na língua oral, a história é
bem diferente. Devagar com o
andor. É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna
às quintas-feiras
E-mail: inculta@uol.com.br
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