São Paulo, quinta, 27 de agosto de 1998

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INCULTA & BELA
"Eu se apavorei"

PASQUALE CIPRO NETO
Colunista da Folha


"Nós vamos se encontrar no shopping." A frase é mais do que comum em bocas de todas as classes -incluída a média, é óbvio.
Qual é o problema? "Nós" é pronome da primeira pessoa. "Se" também é pronome, da terceira pessoa.
Falta uniformidade. O pronome reto "nós" exige o oblíquo "nos" ("vamos nos encontrar", na sintaxe brasileira, ou "vamo-nos encontrar", na sintaxe rigorosamente lusitana).
Em linguagem familiar, ainda seria possível usar o brasileiríssimo "a gente" -aí, sim, com o "se" ("a gente vai se encontrar").
Voltando ao "vamos se encontrar", o que poderia explicar o uso do "se" nesses casos?
Em português -e em outras línguas-, o "se" é um generalizador, um indeterminador.
Em "Alugam-se casas", "Precisa-se de operários", o pronome "se" funciona como indeterminador do executor do processo verbal.
Tem-se, então, a clara idéia de que realmente cabe ao "se" esse papel de elemento genérico, uma espécie de "identidade coletiva". O "se" não é ninguém, mas ao mesmo tempo é todo o mundo.
Pois bem. Na semana passada, a polícia prendeu os membros da quadrilha que teria atacado o ator Gerson Brenner. Depois da discussão interna -quem atirou?-, a confissão de um deles.
Ao explicar por que atirou, o infeliz disse: "Eu se apavorei e puxei o gatilho".
Imagino a reação das pessoas ao vê-lo (e ouvi-lo) pronunciar tal bobagem: "Além de sacana, é analfabeto".
Isso deve ter sido o mínimo. Não me cabe discutir o "sacana". Quanto ao "analfabeto", a coisa é complicada.
Se tomarmos como referência o português padrão -a chamada variante culta da língua-, sem dúvida o acusado é analfabeto.
Mas não está sozinho. É do povo brasileiro a expressão "simbora", grafia livre de uma espécie de interjeição com a qual se convocam os presentes para ir a outro lugar, para sair do lugar em que estão.
E o que é esse "simbora", que não tem grafia oficial, que nenhum dicionário registra, mas que é absolutamente real?
Nada mais é do que a redução de "vamos se embora", prova incontestável de que o brasileiro mistura "nós" e "se".
Isso igualaria, linguisticamente, boa parte do povo brasileiro ao suposto autor do disparo que feriu Brenner. Afinal, o "erro" é o mesmo.
Na verdade, isso prova que a questão precisa ser avaliada com calma. Na língua culta, ninguém aceitaria -nem deve aceitar- "vamos se embora" ou "eu se apavorei".
Na língua oral, a história é bem diferente. Devagar com o andor. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras

E-mail: inculta@uol.com.br



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