São Paulo, quinta, 27 de agosto de 1998

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OPINIÃO
A segunda porta

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI

Tenho me manifestado contra a abertura de uma segunda porta para pacientes privados no Instituto Central do Hospital das Clínicas (ICHC). Entendo como antiético e perverso oferecer em um hospital público atendimento sem filas, com melhores acomodações e entrada diferenciada para aqueles que pagam, sem nenhuma preocupação com a demanda reprimida dos que não pagam.
Não faço nenhum juízo de valor a respeito do hospital no qual me formei e trabalho e que considero o melhor da América Latina. Tampouco é uma crítica aos que nele trabalham com dedicação e eficiência. Só procuro demonstrar o equívoco dessa injusta medida.
O único argumento da superintendência para justificar esse atendimento diferenciado é que ele renderia recursos significativos. Para analisar o que se consegue receber com essa segunda porta, tomaremos por base o ano de 1997, com dados de documentos publicados pelo próprio ICHC.
1) Em 1997, o faturamento decorrente do atendimento aos pacientes privados e de convênios foi de R$ 3.187.701. Nesse mesmo ano, o faturamento de procedimentos do SUS pela Fundação Faculdade de Medicina foi de R$ 109.775.548,62 e o orçamento executado do ICHC, proveniente do governo do Estado de São Paulo, foi de R$ 150.095.428.
2) Portanto, o faturamento com convênios e privados representou 2,9% do faturamento do SUS, 2,1% do orçamento do Estado para o ICHC e apenas 1,2% do faturamento total para o ICHC. Com isso, cai por terra o argumento de que tais recursos melhoram significativamente as finanças.
3) O movimento de pacientes do SUS no ICHC está estacionário. Existem áreas, tempo e leitos ociosos no hospital que, se fossem utilizados para o atendimento de uma maior parcela de pacientes do SUS (aumentando, com isso, em apenas 10% o atendimento desses pacientes), teríamos em 1997 um aumento de recursos três vezes maior do que o decorrente do atendimento a pacientes conveniados e particulares. Portanto desaba também o argumento de que essa é a única alternativa para melhorar o faturamento do ICHC.
4) A Secretaria da Saúde, com um aumento dos recursos orçamentários de apenas 2,1%, cobriria todo o faturamento com os privados. E a Fundação Faculdade de Medicina, que capta recursos do SUS provenientes de pacientes atendidos no ICHC, com 2,9% deles colocaria no ICHC o mesmo montante arrecadado com o atendimento de pacientes privados.
5) Em vez de solucionar o problema dentro dessas alternativas, a fundação compra imóveis por mais de R$ 23 milhões e a superintendência do HC gasta R$ 17.315.809 para reformar áreas do hospital destinadas aos pacientes privados, cujo atendimento determinará um gasto adicional de R$ 373.178,30/mês com custeio.
6) Percebe-se que, ao contrário do que tenta argumentar a superintendência do HC, há um desvio dos recursos dos pacientes que não podem pagar para atender preferencialmente aos que podem.
7) Mesmo que houvesse vantagem econômica (demonstradamente inexistente), só os pressupostos ético e moral já impediriam que em um hospital construído e sustentado com dinheiro público, única alternativa para os mais carentes, fosse aberta uma segunda porta para aqueles que pagam.
8) Nada tenho contra o atendimento de pacientes de qualquer nível social nos hospitais públicos. Penso também que pacientes que tenham recursos ou planos de saúde devem pagar. O que não pode ocorrer é um atendimento desigual, determinado pelo poder aquisitivo dos usuários.
A razão básica de toda essa distorção está em levar o neoliberalismo colonial ao limite extremo de entender saúde como mercadoria e não como um direito, especialmente em um hospital público universitário que sempre atendeu bem -e gratuitamente- a todos.


José Aristodemo Pinotti, 63, é deputado federal pelo PSB-SP e professor titular de ginecologia e obstetrícia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Foi secretário da Saúde e da Educação do Estado de São Paulo e reitor da Universidade Estadual de Campinas E-mail: jose.pinotti@persocom.com.br



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