São Paulo, Quarta-feira, 27 de Outubro de 1999
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Menino implorou pela vida antes de morrer, diz refém


LILIAN CHRISTOFOLETTI
da Reportagem Local

O monitor da Febem Imigrantes Roberto Brasil Alcoforado, 48, conta em detalhes o que ocorreu dentro da unidade e como um interno, que pediu piedade aos agressores, foi assassinado cruelmente dentro da instituição:
"Eu entrei às 19h do domingo na Febem, com outros sete funcionários da ala C (com 340 menores). Quando cheguei, vi que a situação estava tensa.
Quando estava na hora de colocar os menores para dormir, mais ou menos às 21h30, ouvi um grande pipoco (barulho) na ala B (com 140 internos).
Eles arrebentaram um portão, depois outro e tudo foi estourando. As janelas da nossa ala começaram a ser invadidas. Eles batiam nas janelas com ferro, trave de vôlei, até arrancá-las.
A adrenalina foi subindo e, naquela hora, a molecada toda levantou e partiu para cima. A gente não tinha mais o que fazer. Arrombaram tudo, a monitoria foi dominada, apanhou e virou refém.
Eu tomei porrada durante 11 horas. Era pancada nas costas, estiletada nas mãos e chutes. Enquanto me batiam, os menores falavam que eu ia morrer. Aquilo era tortura psicológica.
Chegaram a me cobrir duas vezes com cobertor cheio de álcool e falavam que o meu dia havia chegado. Eles batiam com o que encontravam, machado, marreta, pedaço de cadeira, pau, estiletada e ferro. Usaram materiais da ala D, que está em reforma.
Batiam nos monitores e em alguns menores que não aderiram ao movimento.
Todo momento é assustador. A sentença de morte já havia sido dada. Os menores disseram que, se o batalhão de choque entrasse, não ia sobrar um para contar a história. Não adiantava ter medo, só tinha que argumentar e rezar, se a gente se lembrasse de rezar.
Eu vi um rapaz ser triturado na minha frente. Não posso dizer que ele foi morto, ele foi triturado e depois jogado ao fogo.
Era um menino de 14 ou 15 anos. Pegaram ele escondido atrás de uma caixa.
Não dá para saber quantos foram para cima dele. Ele levou estiletada, marretada e muitos chutes. Durou cerca de 20 minutos.
Só pararam quando o menino virou massa, não havia mais definição do que era.
No início, o garoto implorou por sua vida, berrou, chorou, mas foi silenciado de vez. Depois jogaram ele no fogo e riam muito ao ver a pele estourar.
Foi uma situação brutal, uma demonstração de força. É injusto comparar os internos a animais porque um animal não faz isso.
Os menores invadiram a enfermaria e tomaram álcool e desodorante. Eles bebiam na nossa frente. A situação era deles.
Para mim, a violência deles não está associada ao álcool, ela é latente nos internos. Ali não existe criança. São todos "crionças".
A invasão da ala C deveria ter sido evitada se houvesse, como sempre há, a vigilância (feita pela Vise Segurança). Só que a vigilância havia se retirado e a área ficou livre para eles. Isso nunca ocorreu, foi inédito. Não sei se receberam ordem ou se correram (a empresa nega falha na segurança).
As mães acusam os monitores de bater nos internos. Eu tenho 48 anos e minha mãe me chama de criança. As crianças nunca crescem para os pais.
Alguns monitores batem, mas o que é bater? Um puxão de orelha? A família já acha que isso é espancamento. Manter a ordem não é espancar.
Puxão de orelha você dá até no seu filho. Agora, tomar conta de 350 (internos) que não tem nada a ver com você é bem diferente.
Trabalhos como o do padre Júlio Lancellott não resolvem nada. A Febem está cheia de internos dele. Ele desestrutura o sistema e incita os menores a uma rebelião.
A maioria das pessoas só acredita em Deus quando só tem Ele. Na hora da rebelião tinha um monte de Bíblia queimada e ninguém segurou a Bíblia. As mesmas pessoas que rezam, batem e matam. Se pudessem, guardariam a arma dentro da Bíblia.
Em 15 dias, se estiver melhor psicologicamente, volto a trabalhar. Antes, vou entrar com uma ação contra o Estado pois não sou pago para apanhar."


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