São Paulo, segunda-feira, 29 de abril de 2002

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MENINAS DE ALUGUEL

De famílias egressas do campo, garotas se prostituem em bares frequentados por caminhoneiros

Filhas de migrantes alimentam exploração

DA ENVIADA ESPECIAL A SAPÉ

Severino Guilhermino de Souza, 73, o "seu Bill", nunca usou um par de sapatos. Seus pés, maltratados pelo trabalho no campo, só cabem em alpargatas de um modelo que já nem se fabrica mais.
Também já é passado o sonho que fez com que ele se alistasse no movimento das Ligas Camponesas (movimento popular que antecedeu o MST no Nordeste) no início dos anos 60.
"Sempre soubemos que fora do campo viveríamos no inferno", diz seu Bill, que mora em Sapé (50 km de João Pessoa) e assiste às netas das famílias egressas do campo serem contabilizadas nas estatísticas de prostituição infantil.
De acordo com a estimativa da Pastoral do Menor em Sapé, pelo menos 70 adolescentes se prostituem nas ruas e bares. Segundo integrantes da pastoral, não há políticas públicas de combate à exploração sexual infantil e a ação da polícia é inexistente.
O bar citado pelas menores ouvidas pela Folha como um dos pontos de prostituição infantil se chama "Cheiro de Menina". "Dá para entender o que tem lá, né?", pergunta Raquel, 15, que já trabalhou no local. O único projeto que atua junto às meninas é o da pastoral, que atende apenas dez.
A exploração sexual em Sapé se mistura à história da luta pela terra. Muitas meninas prostitutas vivem nos bairros mais pobres da cidade, habitados por famílias que migraram do campo.
Isso ocorre, por exemplo, nas chamadas "Cubas", bairros fundados por famílias que migraram do campo em razão do enfraquecimento da atividade das usinas de cana-de-açúcar nos anos 80.
Há duas versões desse bairro: a Cuba de Cima, na entrada da cidade, e a Cuba de Baixo, na saída. "Os moradores das Cubas são discriminados. Dizem que o bairro só tem prostituta e maconheiro, mas a realidade não é bem essa", diz Jailton Ferreira da Silva, 26, morador da Cuba de Baixo.
Antes de se mudar para o bairro, Silva viveu com a família nas terras da Usina Santa Helena. Ele diz que o desemprego na Cuba de Baixo é tão grande que é mais fácil contar os empregados. Parte dos moradores passa seis meses por ano em Pernambuco, trabalhando nas usinas de cana.
O desemprego e a miséria criaram um clima favorável à desagregação familiar, explica a irmã Maria Lúcia Cantalupo, 53, da pastoral, que mantêm duas creches para 800 crianças em idade pré-escolar. A instituição é mantida com doações européias. Não recebe um tostão do governo.
Sapé é um dos municípios do Peti (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), do governo federal. Mas os repasses para atividades sociais, culturais e esportivas de 400 crianças e adolescentes estão atrasados. O programa começou em junho, mas os recursos (R$ 20 mensais por criança) só chegaram no mês passado.
Enquanto Maria, 16, uma menina desdentada e analfabeta, conta sua vida, vai ficando mais fácil entender as palavras da freira.
A menina saiu de casa aos 13 anos, fugindo das surras da mãe. Recentemente sofreu um acidente de carro e, dias depois, abortou um feto de dois meses. "Enterrei bem ali", diz, apontando o fundo do quintal. "Ele era compridinho, e as meninas disseram que isso é forma de menino macho", diz ela.
Com o corpo dolorido, Maria parou os programas. "Não tenho dinheiro para comprar o leite da minha filha." Aos sete meses, a criança mora com a avó. Maria vive num bar no local onde os caminhoneiros fazem pernoite.
Lucila, 16, diz que as meninas que saem com caminhoneiros "passam um medo louco" quando entram na cabina do desconhecido. "Mas o mínimo que eles pagam é R$ 50, e ainda são rápidos." (GABRIELA ATHIAS)

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