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RUBEM ALVES
Por que escrevo sobre religião
Veblen, economista, disse que não compramos "utilidades", coisas práticas, materiais. Compramos símbolos
UMA LEITORA ME perguntou:
"Por que é que você, professor universitário, escritor,
gasta tanto tempo com essas coisas
da religião?" Ela pensava que eu, havendo lido Marx, Freud e Feuerbach, deveria dar um uso mais científico ao meu tempo e ao meu
pensamento.
Minha resposta é simples: gasto o
meu tempo com os sonhos das religiões porque, como disse Shakespeare, nós somos feitos de sonhos. A
história é feita com sonhos. Todas as
coisas materiais que fazem a vida da
civilização são feitas com sonhos.
Escrevo sobre a religião num esforço para acordar os que dormem.
Lembro-me da propaganda de um
carro que vi, faz muitos anos, numa
revista americana: era um conversível vermelho, sem capota, parado
num bosque. Não há ninguém no
carro, e as duas portas estão abertas.
A sedução -o motivo comercial
para seduzir o leitor a comprar- se
encontra precisamente naquilo que
não se encontra na cena, mas apenas
na imaginação. Se as duas portas estivessem fechadas, a mensagem seria simplesmente o carro vermelho
sem capota. Se só a porta do motorista estivesse aberta, a imaginação
completaria a cena: ele deve estar
atrás de uma árvore fazendo xixi.
Mas as duas portas foram deixadas abertas. As pessoas que ocupavam o carro estavam com pressa. A
imaginação não tem alternativas, as
imagens se impõem: um homem e
uma mulher. Onde estarão eles? Fazendo o que? Bem dizia Bachelard
que aquilo que se vê não pode se
comparar com aquilo que não se vê.
Quem bolou essa propaganda genial
sabia que a alma é feita de sonhos.
Veblen, economista, também conhecia a alma humana e por isso declarou que não compramos "utilidades", coisas práticas, materiais.
Compramos símbolos.
Isso que vou contar aconteceu no
tempo em que a televisão fazia propaganda de cigarros. Cena silenciosa, sem uma única palavra: um bosque de pinheiros... Eu amo a natureza, amo os pinheiros, o perfume da
sua resina. Os pinheiros cedem lugar a um regato de águas frias e cristalinas que corre sobre pedras. Eu
também amo os regatos de águas
frias e cristalinas. Uma campina verde florida. Minha imaginação sugeriu logo que deveria ser capim gordura com o seu perfume único o que
me levou para a minha infância em
Minas. Cavalos selvagens em galope,
pelo negro brilhante. Estava certo o
presidente João Batista Figueiredo
quando disse que o cheiro dos cavalos suados era melhor que o cheiro
de gente suada. Leonardo da Vinci
declarou que os cavalos são os animais mais belos depois dos homens.
Cheguei a imaginar que seria possível produzir um perfume másculo
extraído do suor dos cavalos. Nenhuma mulher o resistiria!
Aí entra o rosto de um vaqueiro,
maxilar de noventa graus, barba de
um dia por fazer -homem que é homem não se barbeia todo dia, isso é
coisa de executivo-, com um cigarro entre os dedos, estilo Humphrey
Bogart e as palavras, as únicas palavras: "Venha para o mundo de Marlboro!" Não, ninguém está falando
em fumar! Está se falando de um
mundo de pinheiros, regatos, campinas, cavalos -tudo isso faz parte
do sonho que mora nas espirais de
fumaça da imaginação...
O conversível vermelho com as
duas portas abertas e o mundo de
Marlboro pertencem ao mundo das
fantasias religiosas. São sacramentos. Porque sacramentos são todas
as coisas feitas com uma mistura de
matéria e símbolos.
Você entende agora porque eu
penso e escrevo sobre religião?
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