São Paulo, segunda-feira, 30 de agosto de 2004

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MOACYR SCLIAR

Ladrão que rouba ladrão, que rouba ladrão

Dono de lotérica forja assalto para pegar o dinheiro do seguro.
Cotidiano Online, 25.ago.2004

A simulação correu às mil maravilhas, inclusive porque, na hora do pretenso assalto, a lotérica estava cheia de clientes que poderiam, em qualquer eventualidade, servir de testemunhas. O assaltante entrou, mascarado, arma em punho; conforme combinado, mandou que todos deitassem no chão, esvaziou a caixa registradora e até o cofre. Saiu sem disparar um tiro, sem ferir ninguém. Um assalto igual a tantos outros que os jornais registram diariamente. Nem a polícia nem o seguro desconfiariam.
Naquela noite o assaltante e o dono da lotérica se reuniram, num bar distante dali, para celebrar o êxito da operação e também para acertar as contas. Depois dos brindes, o assaltante recebeu o pagamento, uma substancial quantia em dinheiro. Contou as notas e guardou-as no bolso.
- E o meu dinheiro? - perguntou o dono da lotérica.
O assaltante fez uma cara de estranheza:
- Seu dinheiro? De que dinheiro você está falando?
- Do dinheiro que você levou lá da lotérica - disse o outro, desagradavelmente surpreso e já alarmado. - O dinheiro da registradora, o dinheiro do cofre...
- Ah, isso! - O assaltante sorriu. - Este dinheiro não é seu. Seu é o dinheiro do seguro. O dinheiro do assalto é meu, é dinheiro que ganhei com meu trabalho.
- Mas o que lhe paguei...
- Você me pagou por ter lhe ajudado. Eu podia ter lhe dado um tiro, como tantos outros assaltantes. Não fiz isso exatamente porque você tinha me pago. Portanto, estamos quites.
O dono da lotérica ia retrucar qualquer coisa, mas o assaltante fechou a cara:
- Acho bom encerrarmos esta conversa, antes que ela se torne desagradável. Vamos continuar amigos; é melhor para sua saúde.
O dono da lotérica concordou. Pediu licença, foi até o banheiro. Dali fez uma ligação pelo celular. Voltou, pagou a conta, os dois saíram.
O assaltante estava voltando para casa, perto dali, quando foi interceptado por três homens mascarados. E bem informados: não apenas sabiam o montante exato do dinheiro que ele trazia consigo, mas até indicaram o bolso em que ele havia guardado. O assaltante não discutiu. Fez-lhes apenas uma recomendação:
- Cobrem pelo serviço, mas não esqueçam: esse dinheiro é de vocês. Não entreguem um centavo.
Ficou a observá-los quando se iam. E notou: um deles, o que guardara a quantia, puxava ligeiramente da perna direita. Detalhe importante, quando, ao assaltá-los, ele tivesse de apontar quem estava com o dinheiro.


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.


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