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MOACYR SCLIAR
Ladrão que rouba ladrão, que rouba ladrão
Dono de lotérica forja assalto para
pegar o dinheiro do seguro.
Cotidiano Online, 25.ago.2004
A simulação correu às mil
maravilhas, inclusive porque, na hora do pretenso assalto,
a lotérica estava cheia de clientes
que poderiam, em qualquer eventualidade, servir de testemunhas.
O assaltante entrou, mascarado,
arma em punho; conforme combinado, mandou que todos deitassem no chão, esvaziou a caixa
registradora e até o cofre. Saiu
sem disparar um tiro, sem ferir
ninguém. Um assalto igual a tantos outros que os jornais registram diariamente. Nem a polícia
nem o seguro desconfiariam.
Naquela noite o assaltante e o
dono da lotérica se reuniram,
num bar distante dali, para celebrar o êxito da operação e também para acertar as contas. Depois dos brindes, o assaltante recebeu o pagamento, uma substancial quantia em dinheiro.
Contou as notas e guardou-as
no bolso.
- E o meu dinheiro? - perguntou o dono da lotérica.
O assaltante fez uma cara de estranheza:
- Seu dinheiro? De que dinheiro você está falando?
- Do dinheiro que você levou
lá da lotérica - disse o outro, desagradavelmente surpreso e já
alarmado. - O dinheiro da registradora, o dinheiro do cofre...
- Ah, isso! - O assaltante sorriu. - Este dinheiro não é seu.
Seu é o dinheiro do seguro. O dinheiro do assalto é meu, é dinheiro que ganhei com meu trabalho.
- Mas o que lhe paguei...
- Você me pagou por ter lhe
ajudado. Eu podia ter lhe dado
um tiro, como tantos outros assaltantes. Não fiz isso exatamente
porque você tinha me pago. Portanto, estamos quites.
O dono da lotérica ia retrucar
qualquer coisa, mas o assaltante
fechou a cara:
- Acho bom encerrarmos esta
conversa, antes que ela se torne
desagradável. Vamos continuar
amigos; é melhor para sua saúde.
O dono da lotérica concordou.
Pediu licença, foi até o banheiro.
Dali fez uma ligação pelo celular.
Voltou, pagou a conta, os dois
saíram.
O assaltante estava voltando
para casa, perto dali, quando foi
interceptado por três homens
mascarados. E bem informados:
não apenas sabiam o montante
exato do dinheiro que ele trazia
consigo, mas até indicaram o bolso em que ele havia guardado. O
assaltante não discutiu. Fez-lhes
apenas uma recomendação:
- Cobrem pelo serviço, mas
não esqueçam: esse dinheiro é
de vocês. Não entreguem um
centavo.
Ficou a observá-los quando se
iam. E notou: um deles, o que
guardara a quantia, puxava ligeiramente da perna direita. Detalhe importante, quando, ao assaltá-los, ele tivesse de apontar
quem estava com o dinheiro.
O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de
ficção baseado em matérias publicadas
no jornal.
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