São Paulo, segunda-feira, 30 de outubro de 2006

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MOACYR SCLIAR

Canela de sogra não é sagrada


Então fiz o que qualquer zagueiro faria numa situação dessas: dei-lhe um chute.O chute da minha vida


Casos "pitorescos" ajudam a lotar o Supremo. Em março de 2004, a primeira turma do STF discutiu o caso de um homem acusado de dar uma canelada na sogra. A denúncia, feita pela sogra, relata que, "no interior da residência da vítima, o acusado desferiu um chute que atingiu sua perna direita". Condenado a três meses de reclusão, recorreu ao Supremo.
Cotidiano, 22 de outubro

"MERITÍSSIMOS JUÍZES , como podem Vossas Excelências perceber, resolvi eu próprio fazer a minha defesa. Estou convencido, meritíssimos, de que nenhum advogado, por melhor que seja, poderia fazê-lo. Para isto, é preciso transmitir a indignação que de mim se apossou ao ser condenado em primeira instância.
Um veredicto, meritíssimos, que revela insensibilidade e uma profunda incompreensão da situação que eu, como genro, vivia. Devo dizer, em primeiro lugar, que amo profundamente minha esposa. Ela é, não tenho dúvida, a mulher da minha vida, e estes anos de casados foram muito felizes. Só não atingimos a felicidade completa por causa de uma única pessoa: a minha sogra.
Minha sogra me odeia, meritíssimos. Sim, eu sei que é proverbial a inimizade entre sogras e noras, entre sogras e genros: muitas anedotas refletem esta realidade. Mas, no caso dessa senhora que, infelizmente, se tornou minha sogra, era muito pior. Ela não perdia ocasião para me hostilizar. E arranjou para isso um excelente pretexto.
É que, meritíssimos, infelizmente nunca consegui ganhar a vida. Não terminei os estudos, não tenho profissão; arranjava um bico aqui, outro ali, mas nada que desse certo. Porque minha vocação era, e é, outra, meritíssimos. Minha vocação era, e é, o futebol. Sou um grande zagueiro, meritíssimos. Modéstia à parte, eu poderia jogar num grande time internacional ou mesmo estrangeiro. Ninguém me bate em impetuosidade, em valentia. E só estou feliz quando adentro o gramado.
Pois foi justamente este o mote que minha sogra arranjou para implicar comigo. Você é um vagabundo, ela dizia, tudo o que você sabe é ficar jogando bola enquanto minha filha trabalha para sustentar você.
No dia do incidente estávamos na casa dela. Tínhamos terminado de jantar e estávamos conversando animadamente, quando de repente ela começou com a ladainha de sempre: você é um vagabundo, tudo o que você sabe é ficar jogando bola.
E aí, meritíssimos, eu fiquei transtornado. Tão transtornado que comecei a imaginar uma cena: eu, num campo de futebol inteiramente vazio. Na minha frente, de calção e chuteiras, quem, senão aquela megera da minha sogra? E ali vinha ela, voando pra cima de mim, louca de vontade de me acertar, de me derrubar, de me pisotear. Então fiz o que qualquer zagueiro faria numa situação dessas: dei-lhe um chute na canela. Um chute glorioso, meritíssimos. O chute da minha vida.
A mulher soltou um grito espantoso e saiu correndo. E daí por diante foi um desastre atrás do outro: a briga com minha mulher, a censura dos parentes e a condenação. Mas acreditem, meritíssimos: se aquela canela aparecesse de novo na minha frente, eu não teria dúvidas em chutá-la quantas vezes fosse necessário.
Porque sogra pode ser sagrada, meritíssimos, mas canela de sogra não o é. E é ali que ela aprende a respeitar um pobre genro."


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha


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