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MOACYR SCLIAR
Canela de sogra não é sagrada
Então fiz o que qualquer zagueiro faria numa situação dessas: dei-lhe um chute.O chute da minha vida
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Casos "pitorescos" ajudam a lotar o Supremo. Em março de 2004, a primeira
turma do STF discutiu o caso de um homem acusado de dar uma canelada na sogra. A denúncia, feita pela sogra, relata
que, "no interior da residência da vítima,
o acusado desferiu um chute que atingiu
sua perna direita". Condenado a três meses de reclusão, recorreu ao Supremo.
Cotidiano, 22 de outubro
"MERITÍSSIMOS JUÍZES ,
como podem Vossas
Excelências perceber,
resolvi eu próprio fazer a minha defesa. Estou convencido, meritíssimos, de que nenhum advogado, por
melhor que seja, poderia fazê-lo. Para isto, é preciso transmitir a indignação que de mim se apossou ao ser
condenado em primeira instância.
Um veredicto, meritíssimos, que revela insensibilidade e uma profunda
incompreensão da situação que eu,
como genro, vivia.
Devo dizer, em primeiro lugar,
que amo profundamente minha esposa. Ela é, não tenho dúvida, a mulher da minha vida, e estes anos de
casados foram muito felizes. Só não
atingimos a felicidade completa por
causa de uma única pessoa: a minha
sogra.
Minha sogra me odeia, meritíssimos. Sim, eu sei que é proverbial a
inimizade entre sogras e noras, entre sogras e genros: muitas anedotas
refletem esta realidade. Mas, no caso dessa senhora que, infelizmente,
se tornou minha sogra, era muito
pior. Ela não perdia ocasião para me
hostilizar. E arranjou para isso um
excelente pretexto.
É que, meritíssimos, infelizmente
nunca consegui ganhar a vida. Não
terminei os estudos, não tenho profissão; arranjava um bico aqui, outro
ali, mas nada que desse certo. Porque minha vocação era, e é, outra,
meritíssimos. Minha vocação era, e
é, o futebol. Sou um grande zagueiro,
meritíssimos. Modéstia à parte, eu
poderia jogar num grande time internacional ou mesmo estrangeiro.
Ninguém me bate em impetuosidade, em valentia. E só estou feliz
quando adentro o gramado.
Pois foi justamente este o mote
que minha sogra arranjou para implicar comigo. Você é um vagabundo, ela dizia, tudo o que você sabe é
ficar jogando bola enquanto minha
filha trabalha para sustentar você.
No dia do incidente estávamos na
casa dela. Tínhamos terminado de
jantar e estávamos conversando
animadamente, quando de repente
ela começou com a ladainha de sempre: você é um vagabundo, tudo o
que você sabe é ficar jogando bola.
E aí, meritíssimos, eu fiquei transtornado. Tão transtornado que comecei a imaginar uma cena: eu, num
campo de futebol inteiramente vazio. Na minha frente, de calção e
chuteiras, quem, senão aquela megera da minha sogra? E ali vinha ela,
voando pra cima de mim, louca de
vontade de me acertar, de me derrubar, de me pisotear. Então fiz o que
qualquer zagueiro faria numa situação dessas: dei-lhe um chute na canela. Um chute glorioso, meritíssimos. O chute da minha vida.
A mulher soltou um grito espantoso e saiu correndo. E daí por diante foi um desastre atrás do outro: a
briga com minha mulher, a censura
dos parentes e a condenação. Mas
acreditem, meritíssimos: se aquela
canela aparecesse de novo na minha
frente, eu não teria dúvidas em chutá-la quantas vezes fosse necessário.
Porque sogra pode ser sagrada, meritíssimos, mas canela de sogra não o
é. E é ali que ela aprende a respeitar
um pobre genro."
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção baseado em notícias publicadas na Folha
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