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São Paulo, domingo, 31 de agosto de 2003

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GILBERTO DIMENSTEIN

Lugar de estudante é na rua

Imagine a avenida Paulista, cartão-postal da cidade de São Paulo, transformada em laboratório para estudantes.
Dentro da grade curricular e durante o horário de aula, os alunos frequentariam regularmente museus, entre os quais o Masp, cinemas, teatros, bibliotecas, exposições, além de serem introduzidos no mundo do trabalho pelas empresas instaladas na Paulista.
Os professores seriam treinados para mesclar os saberes e fazeres daquela avenida com matérias como português, geografia, história e ciências a tal ponto que não se distinguiriam mais os limites entre escola e rua, ambas fundidas num só espaço educativo.
Por mais delirante que pareça, esse laboratório de engenharia comunitária já está em andamento. É mais uma tentativa, entre tantas no Brasil, de mostrar saídas para melhorar a educação e, ao mesmo tempo, produzir cidades mais civilizadas.
 
Ainda engatinhando, os experimentos na avenida Paulista acontecem em uma escola pública (Conselheiro Rodrigues Alves) a partir de uma situação absurda.
O prédio da escola é tombado pelo patrimônio histórico, mas nem a opulência dos vizinhos, que compõem um naco do PIB brasileiro, foi capaz de impedir que assumisse um aspecto desolador, agravado pelo contraste com o entorno: além da pichação, infiltrações ameaçavam derrubar as paredes.
Os estudantes praticamente não usufruem as riquezas culturais e tecnológicas a seu alcance, algumas delas referências mundiais. Exatamente ao lado da Conselheiro Rodrigues Alves está, por exemplo, um dos mais importantes centros latino-americanos de arte digital.
 
Diante do visível absurdo de uma escola padecer em meio a vizinhos tão poderosos, muitos dos quais disseminadores do conceito de responsabilidade social, começou neste ano a operação de engenharia comunitária. Da reforma do prédio ao treinamento dos professores e à modernização do currículo, juntam-se pais, estudantes, professores, empresas, fundações e poder público estadual e municipal.
O que acontece naquele pequeno trecho simboliza a percepção que começa a se espalhar em todo o país de que educar é algo muito sério e complexo para ficar apenas nas mãos das escolas, dos professores e do poder público.
 
No Rio de Janeiro, a iniciativa de abrir as escolas nos fins de semana, convertendo-as em centros comunitários, reduziu o nível de violência e de depredação e, por envolver as famílias, afetou positivamente o aprendizado dos alunos. Em várias cidades, como Salvador, Recife, Belo Horizonte, Porto Alegre e Curitiba, entre outras, casos isolados mostram que, quanto maior o envolvimento comunitário, melhor tende a ser a qualidade de ensino -os professores e os diretores ficam mais motivados e as crianças percebem o valor do conhecimento.
Tanto a proposta do Centro Educacional Unificado (CEU), de Marta Suplicy (PT), que une, em um mesmo espaço, cultura e esporte, como a da Escola da Família, de Geraldo Alckmin (PSDB), de abrir as instalações de todas as escolas estaduais nos fins de semana, com atividades administradas por universitários, assentam na aposta da engenharia comunitária. É claro que o sucesso das propostas depende da competência para gerir essa complexidade de agentes -o que está para ser provado.
 
Testemunhei, em Nova York, verdadeiros milagres operados em escolas públicas quando a comunidade atuava, na prática, como um corpo docente.
O que li e observei em experiências internacionais vejo de perto há seis anos com educadores que desenvolvem o projeto de bairro-escola, em São Paulo. Em poucas palavras, busca-se transformar todo o bairro numa escola, fazendo dos ateliês, praças, cinemas, teatros, becos e oficinas uma extensão das salas de aula. O papel dos educadores é ressignificar espaços, produzir programas complementares ao ensino formal e traçar roteiros alternativos de aprendizado. Aprende-se, por exemplo, anatomia numa escola de circo, através do movimento dos corpos, história numa aula de culinária, artes plásticas nas paredes de um beco, cidadania ao cuidar de uma praça ou português elaborando um site.
Não demora muito para que a curiosidade das crianças seja despertada -o que, cedo ou tarde, se reflete em melhoria da relação, nem que seja pela crítica, dos alunos com suas escolas.
 
Todos já sabem e não se cansam de repetir que o problema da educação está na qualidade. Todos repetem que vivemos na era da aprendizagem permanente. A novidade é que os responsáveis por políticas públicas começam a descobrir que se deve prestar atenção tanto ao que acontece em sala de aula como às lições da rua.
Qualquer projeto de educação que, atualmente, não leve em conta a importância da pedagogia comunitária é tão frágil como uma escola sem bons professores.
 
PS - Um dos participantes da experiência da avenida Paulista é o professor Antônio Carlos Gomes da Costa, um dos mais influentes pensadores da educação brasileira. Ele escreveu um texto, ainda inédito, sobre comunidades educativas, com base nas demandas da sociedade do conhecimento. O texto está na página do Aprendiz: www.aprendiz.org.br.

E-mail - gdimen@uol.com.br


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