São Paulo, Terça-feira, 31 de Agosto de 1999
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Dom Hélder e o bem-estar social da Dinamarca

MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas

As empregadas domésticas que varrem lá fora são iscas ambulantes para ladrões que assaltam casas e prédios. As empregadas e os faxineiros que varrem e lavam calçadas de mansões e prédios residenciais já estão funcionando como armadilhas humanas, montadas por algumas empresas de segurança privada.
As empresas dão recomendações específicas aos proprietários, patrões e condôminos: 1. trancar toda a casa enquanto a empregada varre lá fora, não abrir portões ou portas em caso de ela vir a ser vítima de assalto (que poderá ser observado de dentro da casa por câmeras); 2. fazer a empregada portar, em alguma parte do corpo, um alarme de controle remoto, que será acionado por ela em caso de assalto e tocará dentro da casa e na central da empresa de segurança, que enviará socorro.
É a tecnologia de ponta a serviço da injustiça social -empregadas domésticas e funcionários de condomínios transformados em escudos humanos. E quem vai dizer que está errado o patrão ou proprietário que se recusar a abrir os portões para a entrada da empregada e, consequentemente, dos bandidos? Afinal, não estará ele apenas defendendo seu filho, sua mulher e seu patrimônio? Que valor tem, afinal, a vida de uma empregada, de um faxineiro ou de um porteiro quando comparada com a de sua família ou com seu precioso patrimônio?
A injustiça social sofistica-se, exige novas armas de quem quiser combatê-la. Dom Hélder Câmara, o arcebispo emérito de Recife e Olinda que dedicou toda a sua vida à luta contra a pobreza, pela dignidade e pelos direitos da pessoa humana, não viveu (ainda bem) para lidar com esse grau de perversidade que atinge a nossa desigualdade social.
Morto sexta-feira última, dom Hélder combateu com valentia, e de sandálias franciscanas, a miséria dos mangues pernambucanos. Mais de uma vez eu o vi, menina no Recife dos anos 60, andando pelas ladeiras de Olinda, visitando mocambos de palha assentados sobre dunas de areia branca em Boa Viagem, Prazeres e Afogados. Superava as religiões e os credos. Até os xangozeiros e os protestantes (caso da minha família) respeitavam o padre católico boníssimo.
Dificilmente se realizará o anseio de dom Hélder por um milênio sem fome. No Brasil, a exclusão social implica, cada vez mais, exclusão do próprio direito da pessoa à vida.

A propósito da minha coluna da semana passada, que defendia melhores condições de atendimento nos tribunais de pequenas causas e nos órgãos da Justiça em geral, uma crítica me chamou a atenção: a de alguém que me advertia para o fato de que os tribunais já melhoraram muito em relação ao que eram e me perguntava se eu estava pensando que o Brasil é a Dinamarca.
"Está querendo o quê? Está pensando que aqui é a Dinamarca?" Ou seja, a pessoa era a expressão mesma do autoritarismo social que funda a sociedade brasileira. Reproduzia a ideologia de que, para pobre, migalhas e sobras estão bem demais; ou de que "pobre é assim mesmo, você dá a mão e eles querem o corpo inteiro", quer dizer, querem o bem-estar social da Dinamarca, direito à vida e acesso aos recursos básicos como habitação, serviços de saúde, educação, emprego e dignidade. Viva a Dinamarca.


Email: mfelinto@uol.com.br



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