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Dom Hélder e o bem-estar social da Dinamarca
MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas
As empregadas domésticas que
varrem lá fora são iscas ambulantes para ladrões que assaltam casas e prédios. As empregadas e os
faxineiros que varrem e lavam
calçadas de mansões e prédios residenciais já estão funcionando
como armadilhas humanas,
montadas por algumas empresas
de segurança privada.
As empresas dão recomendações específicas aos proprietários,
patrões e condôminos: 1. trancar
toda a casa enquanto a empregada varre lá fora, não abrir portões
ou portas em caso de ela vir a ser
vítima de assalto (que poderá ser
observado de dentro da casa por
câmeras); 2. fazer a empregada
portar, em alguma parte do corpo,
um alarme de controle remoto,
que será acionado por ela em caso
de assalto e tocará dentro da casa
e na central da empresa de segurança, que enviará socorro.
É a tecnologia de ponta a serviço da injustiça social -empregadas domésticas e funcionários de
condomínios transformados em
escudos humanos. E quem vai dizer que está errado o patrão ou
proprietário que se recusar a abrir
os portões para a entrada da empregada e, consequentemente, dos
bandidos? Afinal, não estará ele
apenas defendendo seu filho, sua
mulher e seu patrimônio? Que valor tem, afinal, a vida de uma empregada, de um faxineiro ou de
um porteiro quando comparada
com a de sua família ou com seu
precioso patrimônio?
A injustiça social sofistica-se,
exige novas armas de quem quiser
combatê-la. Dom Hélder Câmara, o arcebispo emérito de Recife e
Olinda que dedicou toda a sua vida à luta contra a pobreza, pela
dignidade e pelos direitos da pessoa humana, não viveu (ainda
bem) para lidar com esse grau de
perversidade que atinge a nossa
desigualdade social.
Morto sexta-feira última, dom
Hélder combateu com valentia, e
de sandálias franciscanas, a miséria dos mangues pernambucanos.
Mais de uma vez eu o vi, menina
no Recife dos anos 60, andando
pelas ladeiras de Olinda, visitando mocambos de palha assentados sobre dunas de areia branca
em Boa Viagem, Prazeres e Afogados. Superava as religiões e os
credos. Até os xangozeiros e os
protestantes (caso da minha família) respeitavam o padre católico boníssimo.
Dificilmente se realizará o anseio de dom Hélder por um milênio sem fome. No Brasil, a exclusão social implica, cada vez mais,
exclusão do próprio direito da
pessoa à vida.
A propósito da minha coluna da
semana passada, que defendia
melhores condições de atendimento nos tribunais de pequenas
causas e nos órgãos da Justiça em
geral, uma crítica me chamou a
atenção: a de alguém que me advertia para o fato de que os tribunais já melhoraram muito em relação ao que eram e me perguntava se eu estava pensando que o
Brasil é a Dinamarca.
"Está querendo o quê? Está pensando que aqui é a Dinamarca?"
Ou seja, a pessoa era a expressão
mesma do autoritarismo social
que funda a sociedade brasileira.
Reproduzia a ideologia de que,
para pobre, migalhas e sobras estão bem demais; ou de que "pobre
é assim mesmo, você dá a mão e
eles querem o corpo inteiro", quer
dizer, querem o bem-estar social
da Dinamarca, direito à vida e
acesso aos recursos básicos como
habitação, serviços de saúde, educação, emprego e dignidade. Viva
a Dinamarca.
Email: mfelinto@uol.com.br
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