São Paulo, quinta, 31 de dezembro de 1998

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INCULTA & BELA

Embarcar no trem

PASQUALE CIPRO NETO
Colunista da Folha

Sabemos que, com o tempo e com o uso, é comum que se perca a noção do sentido literal de muitas palavras. Suponhamos que você vá pela primeira vez a uma determinada estação de metrô. Você nunca esteve lá e, por isso, para pegar o trem, há duas possibilidades: perguntar a um funcionário ou seguir as placas de orientação. É mais rápido seguir as placas. Que vão indicar o quê? O embarque, é claro. Lá vai você, seguindo as placas. Desce uma escada e encontra uma placa: "Embarque". Outra escada, outra placa: "Embarque". Vira à direita, e outra placa: "Embarque". Mais uma escada, e finalmente você chega ao lugar em que se toma... o barco, ou melhor, o metrô. Alguma vez você embarcou em trem, avião, ônibus ou metrô pensando que, na verdade, deveria "entrenar", "enaviãozar", "enonibusar" ou "emetrozar"? Certamente, não. Mas é pouco provável que algum dia tenha relacionado "embarcar" com "barco". Se você procurar "embarcar" em algum dicionário (dos grandes), certamente vai encontrar "em + barco + ar". "Embarcar" deriva de "barco". Pela falta de um verbo específico para cada caso, acabamos usando "embarcar" para o ato de entrar para viajar em qualquer meio de transporte: trem, avião, navio, carro, metrô, ônibus. Isso tem nome: catacrese. De origem grega, a palavra indica o processo pelo qual se emprega um termo figurado por falta de termo próprio. Você leu bem: termo figurado. É por isso mesmo que muita gente define a catacrese como "metáfora desgastada". Exemplos não faltam, comuns no dia-a-dia. Quer um ótimo caso? Chá de camomila. E por quê? Quando pensamos em "chá", pensamos em qualquer bebida preparada por meio de infusão de ervas. Mas, ensinam os dicionários, "chá" -palavra de origem chinesa- é "arbusto da família das teáceas (Thea sinensis); as folhas secas desse arbusto". "Chá", como se vê, é o vegetal, as folhas. Como com essas folhas se faz uma infusão, por extensão "chá" acaba sendo sinônimo de qualquer bebida preparada por esse sistema: chá de hortelã, de erva-doce, de erva-cidreira etc. Casos como o da palavra "chá" podem fazer sentido em uma língua, mas não em outra. Em italiano, não se diz "um chá de camomila", e sim "uma camomila" -feita a tradução, naturalmente. Para você pensar, vou deixar alguns exemplos de catacrese: pé da montanha, bico do bule, dente do pente, enterrar a faca no peito, braço da cadeira, perna da mesa, barriga da perna, céu da boca, dente de alho etc. Em alguns casos, existe nome próprio. O "céu da boca" é o "palato", termo de uso restrito. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
E-mail: inculta@uol.com.br



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