São Paulo, quinta, 31 de dezembro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO

Mulheres e direitos humanos

FLÁVIA PIOVESAN
e SILVIA PIMENTEL

O aniversário dos 50 anos da Declaração Universal de Direitos Humanos, no último dia 10 de dezembro, suscita um balanço dos desafios e das perspectivas para a proteção dos direitos humanos.
Se a barbárie e as atrocidades da Segunda Guerra significaram a ruptura com os direitos humanos, a declaração haveria de significar o marco para a sua reconstrução. Ela introduz a concepção contemporânea de direitos humanos, caracterizada pela universalidade e indivisibilidade. Universalidade porque clama pela extensão universal desses direitos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para sua dignidade e titularidade. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais, e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o são. Os direitos humanos compõem, assim, uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada.
Ao longo desses 50 anos, observa-se que a universalidade dos direitos humanos tem como maior desafio o padrão discriminatório que impede o pleno exercício de direitos em razão da pertinência a determinados gênero, raça, etnia e outros critérios. Como exemplo, cabe lembrar os conflitos étnicos que marcaram os genocídios da Bósnia e de Ruanda, na década de 90, ou a discriminação sofrida por mulheres no Afeganistão, imposta pelo grupo extremista Taleban. Esses casos refletem a lógica da intolerância, que viola o direito à diferença, o que, por sua vez, obsta a extensão universal da cidadania.
Quanto à indivisibilidade dos direitos humanos, o maior desafio contemporâneo atém-se à efetivação dos direitos sociais em face da globalização, pautada por políticas neoliberais, que impõem a redução dos gastos públicos em prol da austeridade econômica. A grave afronta aos direitos sociais básicos afeta a observância dos direitos civis, sendo que o processo de exclusão tem como alvo preferencial os grupos socialmente mais vulneráveis -o que exige seja esse processo compreendido sob o enfoque de raça, gênero, etnia e idade, dentre outros critérios.
Para responder a esses desafios, o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher apresentou em sessão da ONU, no último dia 10, o documento "Declaração dos Direitos Humanos desde uma Perspectiva de Gênero", como contribuição do movimento de mulheres ao 50º aniversário da declaração.
A proposta é estruturada em cinco importantes eixos: 1) direitos de identidade e cidadania; 2) direito à paz e a uma vida livre de violência; 3) direitos sexuais e reprodutivos; 4) direito ao desenvolvimento; e 5) direitos ambientais. O objetivo central é estimular o debate da universalidade e da indivisibilidade dos direitos humanos, a partir do enfoque de gênero e das transformações históricas ocorridas nos últimos 50 anos.
Propõe-se que seja ampliada a indivisibilidade dos direitos humanos, com o reforço da imperatividade dos direitos sociais, econômicos e culturais, sob o lema de um desenvolvimento sustentável, que observe os direitos ambientais. Propõe-se também que seja repensada a universalidade dos direitos humanos, com ênfase nos direitos de identidade e cidadania e a uma vida livre de violência (tanto na esfera pública como na privada), bem como nos direitos sexuais e reprodutivos. Todas essas pautas são essenciais à plenitude dos direitos humanos, sob a perspectiva de uma relação de equidade entre os gêneros.
O documento traduz sobretudo a crença de que os direitos humanos constituem a plataforma emancipatória contemporânea, simbolizando a busca de inclusão ante o processo de exclusão social, em prol da revitalização e do resgate da dignidade humana.


Flávia Piovesan, 30, procuradora do Estado e doutora em direito constitucional, é coordenadora do grupo de trabalho de direitos humanos da Procuradoria Geral do Estado (SP), professora de direito constitucional da PUC-SP e membro do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem-Brasil).


Silvia Pimentel, 58, advogada, é professora de filosofia do direito na PUC-SP e coordenadora nacional do Cladem-Brasil.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.