São Paulo, domingo, 01 de julho de 2001

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VIZINHO EM CRISE
Caos econômico abala identidade do país e faz desaparecer o sentimento europeu de Primeiro Mundo
Sonho acaba e Argentina descobre ser pobre

CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A BUENOS AIRES

Ao festejar seus 90 anos, no domingo passado, o escritor Ernesto Sábato, um dos últimos ícones vivos da Argentina, descrevia assim para o jornal "La Nación" a sensação de profunda vertigem que assombra seus compatriotas:
"Vivemos com a sensação de que nos resta um país apenas para mais um ou dois dias".
O dramático é que mesmo um diagnóstico tão sombrio consegue ficar aquém da realidade argentina. A Argentina real vai sobreviver, como é óbvio, mas já desapareceu a Argentina da mitologia, um país rico, europeu, parte do Primeiro Mundo.
Essa crise de identidade talvez seja mais grave que a gravíssima crise econômica, social e política em que o país mergulhou nos últimos três anos.
Crise tão profunda que faz um de seus colunistas políticos de maior prestígio, Mariano Grondona, cunhar a expressão "assincronismo" para descrever a doença argentina.
Seria "a fascinação pelo país rico que a Argentina foi, em vez de reconhecer esse país rico e pobre ao mesmo tempo que a Argentina é hoje".
Reforça o filósofo Enrique Valiente Noailles, em artigo para o jornal "La Nación" na quinta:
"Estamos vivendo o colapso final da representação que fazíamos de nós mesmos. Encontramo-nos na via de regresso de todos os nossos sonhos de grandeza, da imagem anacrônica de país rico, da curiosa impressão de que ser um povo eleito".
É natural, nesse divã coletivo em que se deita a Argentina, que um dos livros de maior vendagem chame-se "O atroz encanto de ser argentinos", em que o escritor Marcos Aguinis faz impiedosa antropologia de seus compatriotas, apesar de terminar com a mensagem otimista de que o país pode, sim, dar a volta por cima.

Desgraçados
Causa da crise de identidade? Para responder com duas frases, ambas do livro de Aguinis: "Estamos sofrendo desde que começou a segunda metade do século 20. Já vamos para a terceira geração de desgraçados".
É justamente por se sentir "desgraçado" que o argentino de hoje é um revoltado. "Os níveis de intemperança são maiores na Argentina do que em outros países da América Latina", constata Graciela Römer, consultora especializada em medir o humor da opinião pública.
E são maiores porque a Argentina tinha, completa Graciela, "uma estrutura social menos polarizada e uma cultura de classe média muito importante".
Agora, a batalha da classe média "é menos para ascender e mais para evitar se transformar em novos pobres", conclui a analista.

Tudo mais pobre
Tudo na Argentina, aliás, empobreceu cruelmente. Empobreceram os consumidores, como verificou Guillermo Oliveto, gerente de Estudos Especiais da consultora CCR, que também vive de medir o comportamento dos consumidores.
"Antes, tínhamos cinco níveis sociais. Agora, só dois. Um representa os 70% mais castigados pela recessão ou pelos temores que decorrem dela, mais os desempregados e subempregados. Os restantes 30% são os que continuam consumindo", diz Oliveto.
Chega a ser irônico, mas empobreceu até o protesto político e social contra o empobrecimento generalizado do país.
"Antes, os protestos visavam aumentos salariais e melhorias nas condições de trabalho. Hoje, são majoritariamente dos que nem sequer possuem trabalho", afirma Maria Capurro, uma das responsáveis pelas pesquisas sobre o protesto social feitas pelo Cels (Centro de Estudos Legais e Sociais).

Assistência
Reforça sua companheira Juana Kweitel: "Os protestos procuram provocar o maior mal-estar possível, para alcançar não um direito, mas assistência", diz ela. É uma alusão à modalidade mais disseminada de protestos, o bloqueio de estradas (foram 323 só no período janeiro/maio deste ano).
O número parece elevado, mas, na verdade, espanta mais é que não tenha havido uma explosão social. "Nunca na história da Argentina houve desemprego tão elevado durante tanto tempo", aponta o cientista político Rosendo Fraga, responsável pelo Centro de Estudos Nova Maioria.
O número oficial mais recente é de outubro e contabiliza 2,1 milhões de desempregados ou 14,9% da população economicamente ativa.
Mas o próprio governo já admite que, na medição feita em maio, o número subiu, talvez para 16%.
Na crise mundial de 1930, o desemprego argentino conseguiu ser menor do que o atual (bateu em 14%).

Cicatrizes
Impossível, pois, discordar do escritor Marcos Aguinis quando ele diz que os argentinos chegam ao terceiro milênio ansiosos e desconfiados, porque estão "cheios de cicatrizes que falam de frustrações em série".
Alguma surpresa com o fato de acharem, como diz Sábato, que lhes sobra país apenas para mais um dia ou dois.


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