São Paulo, Quinta-feira, 01 de Julho de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

Dona Maria, a louca

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

O brasileiro comum, na sua inesgotável ingenuidade caipira, tem, volta e meia, a impressão de estar sendo governado por estrangeiros. Trata-se de uma ilusão. A própria distinção nacional/estrangeiro é uma sobrevivência do passado, um resquício do caipirismo típico do brasileiro.
Como voltou a dizer anteontem o presidente-filósofo do Brasil, o que conta hoje em dia é a "humanidade", o novo "universal concreto" à la Hegel resultante do processo de "globalização" da economia.
Veja, caro leitor, como se autodefine o presidente da República. Do ponto de vista espiritual, é "cartesiano", disse ele no discurso de encerramento da Cimeira União Européia, América Latina e Caribe. Ressalvou, contudo, que o seu cartesianismo contém "elementos" ou "pitadas" de candomblé. "Sem esses elementos", explicou, "não serei propriamente brasileiro".
É curioso que a dimensão especificamente brasileira do espírito presidencial tenha ficado reduzida à condição de "elementos" ou "pitadas", uma espécie de colorido local acrescentado à substância básica européia, consolidada (presume-se) durante a permanência na França nos seus tempos de professor. Mas isso não deve causar espanto. Muito antes da "globalização", o nosso Nelson Rodrigues já avisara que brasileiro não pode viajar, simplesmente não pode viajar.
A fragilidade do brasileiro é comovente. A sua auto-imagem não tem nenhuma definição precisa. Sai do Brasil e volta reformado e transfigurado. Pode não pegar sotaque físico, mas costuma pegar um tremendo sotaque espiritual.
Eis o que eu queria dizer: hoje em dia, o estrangeiro não precisa governar diretamente. Não tem motivos para tal. Pode ficar tranquilamente em Nova York, Londres ou Frankfurt, administrando os seus interesses à distância. Pode confiar no "sotaque espiritual" das lideranças periféricas "globalizadas".
Em discurso pronunciado na comemoração dos dez anos do Iedi (Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial), o empresário José Ermírio de Moraes Filho contou que, na semana passada, estava sendo leiloado o original do célebre alvará emitido em 1785 pela rainha portuguesa d. Maria 1ª, que restringiu severamente a instalação de indústrias no Brasil. Por essa decisão, ficaram proibidas todas as manufaturas de fios, panos e bordados na colônia, com a única exceção de fazendas grossas de algodão que serviam para vestuário dos escravos ou para empregar em sacaria.
D. Maria 1ª acabou entrando para a história como a rainha louca. Em 1785, contudo, ainda estava em plena forma, defendendo a ferro e fogo a aplicação do sistema colonial. O famoso decreto era uma reação ao desenvolvimento incipiente de algumas fábricas no Brasil. Ao substituir importações, essas fábricas brasileiras acarretavam prejuízos às indústrias de Portugal e às receitas do governo metropolitano, que auferia direitos alfandegários sobre a entrada no Brasil de produtos têxteis da Inglaterra e de outros países.
Ah, mas os colonizadores do final do século 20 são mais sutis, mais indiretos e provavelmente mais eficazes do que os do final do século 18! "Bons tempos aqueles em que o inimigo atacava de frente", comentou José Ermírio.
E acrescentou: "Os ataques à nossa indústria continuam, cada vez mais fortes, só que sob diferentes roupagens e rótulos vindos de diferentes "fronts" externos e, o que é pior, muitas vezes do nosso próprio quartel-general. Fazem-no a pretexto de um liberalismo ingênuo (...) e, como última novidade, a pretexto de uma inexorável globalização".
Na semana passada, o presidente da República respondeu, com veemência, às críticas dos industriais paulistas. Declarou que as oligarquias financeiras e industriais estão chorando por um passado de subsídios, favorecimentos estatais e lucros fáceis. "Essa época acabou", disse ele.
Na verdade, José Ermírio foi impreciso. Há uma outra diferença importante entre d. Maria 1ª e FHC. Esse último não é contra a instalação de indústrias no Brasil. E nem é contra subsídios e incentivos. Quando a indústria é estrangeira, o passado de subsídios e incentivos renasce com grande facilidade.
Por meio do BNDES e de incentivos fiscais variados, o governo federal acaba de mobilizar enorme apoio à instalação de uma fábrica da Ford dos EUA.
Na Bahia. É a pitada de candomblé.


Paulo Nogueira Batista Jr., 44, economista e professor da Fundação Getúlio Vargas-SP, escreve às quintas-feiras nesta coluna.
E-mail: pnbjr@ibm.net


Texto Anterior: Metas de inflação são vistas como fáceis
Próximo Texto: Artigo - Celso Pinto: Meta é mais "frouxa" do que imaginava o mercado
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.