São Paulo, Domingo, 01 de Agosto de 1999
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OPINIÃO ECONÔMICA

O que você deve saber sobre a pobreza

RUBENS RICUPERO

Antes tarde do que nunca: é bom que finalmente o maior problema brasileiro entre para a agenda nacional. Não é tão encorajador que o debate ameace resvalar para o estéril domínio pessoal e se caracterize muito mais por confusão e recriminações que conhecimento de causa.
Suponho que pouca gente terá a oportunidade de ler a pesquisa do Ipea sobre o assunto. Por isso faço aqui a montagem das etapas do raciocínio dos pesquisadores, com suas próprias palavras, deixando apenas de lado gráficos e pormenores. O que diz em essência o relatório?
Mais de 75% da população mundial vive em países de renda "per capita" inferior à nossa, o que credencia o Brasil a não ser classificado como pobre. Na verdade, o país é relativamente rico, mas com elevado grau de desigualdade. A principal causa da pobreza de parcela significativa das famílias não se encontra na escassez geral de recursos, mas na péssima distribuição deles.
A desigualdade entre os 80% mais pobres apresenta no Brasil padrão relativamente semelhante ao dos Estados Unidos e da Argentina. O contraste com o padrão internacional localiza-se entre os 20% e, ainda mais, os 10% mais ricos: a intensidade singular e injusta da desigualdade brasileira deve-se, sobretudo, à elevadíssima renda média dos mais ricos (em relação aos mais pobres).
Apesar disso, o combate à desigualdade tem sido (entre nós) muito pouco utilizado como instrumento de redução da pobreza.
O que torna injustificado o (quase exclusivo) viés pró-crescimento econômico (do passado), na medida em que maior atenção à desigualdade provavelmente teria levado a pobreza a valores significativamente inferiores aos de hoje.
O principal fator determinante da desigualdade no Brasil (40%) corresponde ao acesso (ou falta dele) à educação. Vem a seguir o desequilíbrio entre investimento em capital físico e capital humano. A terceira dimensão tem a ver com a presença no mercado de trabalho de 20% das crianças entre 10 e 14 anos, vergonhoso desempenho mesmo na América Latina, superior apenas ao de Honduras!
Quais são as políticas possíveis para combater a desigualdade e a pobreza?
Essas políticas redistributivas podem ser classificadas em: de preços, estruturais e compensatórias. As políticas de preços afastam os preços do seu valor de equilíbrio. A de maior tradição é a do salário mínimo. Devido ao valor extremamente baixo dessa remuneração e ao elevado grau de informalidade, as políticas baseadas no salário mínimo apresentam sérios limites no combate à pobreza no Brasil.
Diante disso, o mais adequado seria a combinação de políticas estruturais, de resultados duradouros e de longo prazo, com políticas compensatórias de resultados imediatos. Como conceituar umas e outras?
As políticas estruturais visam a repartir a renda por meio da redistribuição de ativos (ou bens de produção), garantindo aos mais pobres a posse de volumes suficientes de terra, capital físico ou humano capazes de fazê-los sair da pobreza: reforma agrária, crédito a pequenos empresários e agricultores, política educacional, em particular voltada à capacitação profissional.
A enorme vantagem dessas fórmulas é a possibilidade de redução duradoura da pobreza, como produto de investimento com elevada taxa de retorno social, sem impacto negativo sobre a eficiência da economia e sem estigmatizar seus beneficiários. A desvantagem é que, por depender de demorada maturação, o resultado ocorre apenas no longo prazo.
Sem intervir na distribuição dos ativos (isto é, da riqueza) ou nos preços de mercado, as políticas compensatórias visam a corrigir a posteriori os efeitos (não as causas) da desigualdade, de modo a atingir os grupos carentes, recorrendo a transferências monetárias ou de benefícios, tais como a renda mínima, o abono salarial, o seguro-desemprego.
Suas vantagens são a transparência, o impacto distributivo imediato, o menor efeito sobre a eficiência do sistema produtivo. Contudo elas não representam solução duradoura, pois obrigam a contínua transferência de recursos, com impactos importantes sobre o orçamento público e os impostos, estigmatizando os beneficiários.
Devido à magnitude do déficit social, a capacidade de eliminá-lo com base em transferências é questão sempre presente. Se isso era muito difícil no início da década de 70, o crescimento econômico acumulado nos últimos 25 anos garante que hoje a meta seja financeiramente factível. A fim de erradicar toda a pobreza existente no Brasil, seria necessário volume de transferências anuais de apenas 3,2% da renda das famílias brasileiras. A viabilidade dessa estratégia fica evidente quando se verifica que isso representaria apenas cerca de 15% dos gastos federais na área social (incluindo a Previdência, esses gastos são de US$ 75 bilhões por ano).
Temos aqui, portanto, verdadeiro " vade mecum" sobre a pobreza, espécie de mapa para combatê-la. As frases foram todas retiradas do relatório, sem tirar nem pôr, a não ser as inevitáveis ligações para assegurar a articulação e a concatenação do pensamento.
Tudo isso e mais já constavam da reportagem de Carlos Eduardo Lins da Silva, publicada na Folha tempos atrás. Nada, porém, é tão velho como jornal de ontem, exceto jornal de trasanteontem. Como o bate-boca atual ameaça produzir mais calor, sempre supérfluo em nosso clima, do que a luz que nos faz desesperadoramente falta, achei por bem lembrar aos leitores os parâmetros do assunto.
Na próxima vez, tentarei remexer com a colher torta de minhas observações o molho que está a cozinhar. Até lá, só me resta agradecer a contribuição involuntária que prestaram a esta coluna os autores da pesquisa do Ipea, Ricardo Paes de Barros, Miguel Foguel, Ricardo Henriques e Rosane Mendonça.


Rubens Ricupero, 62, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é autor de "O Ponto Ótimo da Crise" (editora Revan). Escreve aos domingos nesta coluna.

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