São Paulo, Domingo, 01 de Agosto de 1999
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ARTIGO

Será a economia dos EUA a próxima bolha a estourar?

JEFFREY SACHS

Há uma chance razoável de que a economia norte-americana esteja vivendo uma bolha especulativa do mesmo tipo das que estouraram em tantas outras economias nos últimos dez anos -Japão, Coréia, México, para citar apenas algumas poucas. Todas essas bolhas financeiras foram movidas pela existência de um mito subjacente de invencibilidade econômica. Dez anos atrás, os japoneses achavam que estavam com tudo. É difícil acreditar, mas muitos analistas sérios achavam que o Japão estivesse à beira de conquistar a economia mundial naquela época -ou seja, logo antes de o mercado acionário japonês cair mais de 50%. Depois foi o México, que pensou que seu novo acordo comercial com os EUA levaria sua economia a crescer muito -poucos meses antes de essa economia desabar, na pior crise de uma geração inteira.
Hoje, muitos nos EUA acham que já é impossível parar o trem da economia norte-americana e que a revolução da Internet que está em curso nos Estados Unidos é a maior coisa desde a própria Revolução Industrial. Esses exageros, somados à alta do mercado acionário norte-americano baseada nessas perspectivas superotimistas, deveriam nos fazer parar imediatamente para pensar duas vezes. Será que existe uma arrogância excessiva em ação aqui, como houve nas bolhas anteriores? Se a alta do mercado acionário norte-americano realmente terminasse ou se invertesse, quais seriam as consequências para o resto do mundo?
É verdade que os EUA contam com dois pontos fortes reais -a grande flexibilidade de seu sistema de mercado e sua maestria na área do desenvolvimento de novas tecnologias. O "boom" norte-americano recente se baseia em grande medida nos enormes investimentos feitos por empresas norte-americanas nas novas tecnologias informatizadas. Com seu misto especial de mercados e inovação, a economia americana está, de fato, se remodelando com velocidade espantosa. Mas as bolhas financeiras muitas vezes se baseiam em pontos econômicos fortes de fato. Uma bolha ocorre quando esses pontos fortes muito reais repentinamente se revestem de proporções exageradas, até míticas, aos olhos dos investidores, que então se dispõem a aplicar somas imensas no mercado acionário sem prestar atenção às perspectivas realistas de lucros futuros.
Considere-se meu caso favorito da semana. A Amazon, pioneira das vendas ao varejo na Internet -primeiro com livros e, agora, com praticamente qualquer coisa-, anunciou que perdeu US$ 138 milhões no segundo trimestre de 1999, apesar de sua receita de vendas ter triplicado, chegando a US$ 314 milhões. Os investidores se deixaram hipnotizar pela alta no volume de vendas e não prestaram atenção às perdas contínuas sofridas pela empresa, perdas essas que refletem as margens de lucro muito pequenas que há nos mercados varejistas americanos, altamente competitivos. O anúncio da empresa foi seguido por uma alta adicional de cerca de 4% no preço de suas ações no mercado! A Amazon ainda não apresentou lucros, e o valor contábil de seus ativos é de cerca de US$ 650 milhões. Apesar disso, ela já é avaliada em US$ 19 bilhões na Bolsa de Valores, o que faz dela uma das 300 maiores empresas do mundo em termos de valor de mercado!
O que isso sugere é que o mercado acionário norte-americano endoidou. Sim, não faltam teorias que indicam que o apreçamento de mercado está correto. Talvez a Amazon finalmente consiga transformar sua grande base de clientes em grandes lucros, mas ela ainda não provou ser capaz disso. Mas, e se os mercados financeiros estiverem errados, simplesmente, como têm estado por tanto tempo no mundo ao longo dos últimos dez anos? E se a euforia for seguida de um colapso?
Uma coisa é certa: os consumidores americanos deixariam de lado sua orgia atual de consumo, e isso provocaria o desaquecimento da economia americana. Mas será que os EUA entrariam em recessão, ou, pior ainda, numa depressão? Talvez por pouco tempo, mas é pouco provável que seria profunda. Com inflação baixa, um setor bancário relativamente saudável e um Orçamento com superávit, o governo norte-americano provavelmente contaria com a flexibilidade de política monetária e fiscal necessária para fazer uma aterrissagem relativamente macia. Alguns investidores iriam à falência, com certeza, mas, a não ser que as coisas fiquem ainda mais desvairadas do que estão agora, o setor financeiro americano provavelmente sobreviveria intacto, mesmo que o mercado acionário sofresse uma correção bastante significativa. Apesar disso, é hora de os reguladores bancários dos EUA vigiarem os portfólios dos bancos de perto, para assegurar que a euforia atual não se transforme numa montanha de empréstimos bancários impensados.
Será que o resto do mundo ficaria profundamente prejudicado pela possível correção aplicada ao mercado acionário americano -por exemplo, ao sofrer uma queda nas suas exportações ao mercado americano desaquecido?
Esse efeito, provavelmente, também seria bastante modesto. Por um lado, as economias européias, asiáticas, latino-americanas e africanas teriam um mercado menor nos EUA, mas, por outro, elas provavelmente encontrariam menos dificuldade em atrair capital para suas próprias economias, já que menos capital mundial iria fluir para a economia americana. Assim, a queda nos ganhos com as exportações seria contrabalançada pela alta nos investimentos internos, especialmente se essas economias reduzissem suas taxas de juro no caso de um desaquecimento norte-americano.
Resumindo: é bem possível que a economia americana esteja vivendo uma bolha financeira. Milhões de americanos que hoje se consideram gênios do investimento podem acabar decepcionados, se e quando a bolha estourar. O orgulho americano e os gastos dos consumidores americanos sofreriam alguns golpes, mas os prejuízos à economia mundial provavelmente não seriam enormes. Os governos devem possuir os instrumentos (especialmente a política monetária) necessários para limitar os danos, se utilizarem esses instrumentos da maneira correta.


Jeffrey Sachs é diretor do Instituto Harvard de Desenvolvimento Internacional e professor da cadeira Gallen Stone de Comércio Internacional na Universidade Harvard. Atuou como principal assessor econômico estrangeiro dos governos da Rússia, Polônia e Bolívia.
Tradução de Clara Allain


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