São Paulo, quinta-feira, 02 de janeiro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Intoxicação, alienação e escassez

DOMÉRIO NASSAR DE OLIVEIRA

É forte a convicção de que a economia brasileira necessita acumular poupança para poder financiar seu crescimento. Boa parte da mídia e dos homens públicos se apóiam na conveniência desse mito para ir acomodando imobilismo ante a vigilância do establishment.
Prega-se a necessidade de poupança sem que se explique de onde virá: se dos trabalhadores, cuja renda vem caindo continuamente, ou se das empresas, com margens cada vez mais reduzidas para disputar mercados que se estreitam. Afirma-se a disciplina do superávit orçamentário ("poupança pública") sem que se explique de onde devem continuar provindo os recursos num contexto de desaceleração sob juros em alta.
Pouco se fala da necessidade de aumento da base de arrecadação como meio mais natural para que a disciplina nos orçamentos públicos possa se sustentar ao longo do tempo. Não se traz à tona aquilo que mais interessa discutir: como superar o dilema de uma escassez orçamentária que tende a se acentuar se a orientação para mudá-la se resumir ao aumento de impostos ou ao corte de gastos que irão murchar ainda mais a demanda por bens e serviços da iniciativa privada.
Podem ser muitas as razões que legitimam orientações frágeis em seu âmago. Mas o reducionismo explicativo que submete o crescimento à preexistência de poupança pública ou privada também tem raízes teóricas profundas. Advém do pressuposto, obsoleto no tempo e no espaço, de que a economia sempre esgota o uso de recursos escassos diante da demanda socioeconômica. De tal forma que a sociedade precisaria decidir se produz "mais manteiga e menos canhões" ou "mais canhões e menos manteiga", lembrando primeiras e insossas lições dos manuais teóricos que nos intoxicaram. Para produzir bens de investimento, precisaríamos poupar e disponibilizar recursos físicos que se destinariam à produção de bens de consumo, e assim por diante. Afinal, sendo escassos, haveria sempre que se decidir por exclusão.
Inocente na aparência, é esse substrato que, reforçado por teses monetaristas em sua transposição à gestão financeira do país, acaba por fazer com que o princípio de escassez preconizado se auto-realize. Não só por desconsiderar a ociosidade de meios de produção, mas também por suprimir a compreensão de que economia é movimento e interdependência. Excluir consumo para, via poupança, prover investimentos são diretrizes estanques, que tendem a se neutralizar. Conflitam com a dinâmica de uma realidade interdependente: deixar de consumir, poupar e cortar gastos públicos, por um lado, implica deixar de vender, perder lucros e cortar arrecadação, por outro.
Daí que promover crescimento não pressupõe excluir ou reduzir, mas sim avançar com segurança. Poupar, em detrimento do consumo, não é condição prévia para se desenvolver. A condição básica é direcionar, sem descontrole inflacionário, fluxos de crédito para circuitos especiais de oferta e demanda, que se tornem eixos de competitividade, estratégicos ao desenvolvimento brasileiro.
Nesse sentido, a principal reforma a se promover é, efetivamente, a revisão de algumas das atuais regras de gestão creditícia e monetária que nos extraviam quanto às reais possibilidades do Brasil, país onde a fartura de recursos físicos, potencializada por tecnologias que revolucionam índices de produtividade, ressalta a incongruência dos pressupostos econômicos que nos constrangem.
Em vez de só ficar na retranca, refém de um orçamento que paga juros elevados às carteiras de títulos públicos, lastros para retenção antiinflacionária da moeda eletrônica em valorização improdutiva nos computadores bancários, o Tesouro também deveria fazer lançamentos à frente, abrindo condições para a iniciativa privada desenvolver mercados que têm tudo para crescer. Por que não emitir dívida pública para pagar parte dos juros, equalizando taxas àquelas praticadas no exterior, nos empréstimos a se expandir ao agronegócio, à utilização dos combustíveis de origem vegetal, à construção civil e aos demais setores que agreguem valor ao saldo comercial externo?
Não seria uma boa maneira de o Estado reduzir a relação dívida/PIB, emitindo valor de dívida bem menor do que o produto a gerar, compromissado com o total do empréstimo a ser pago depois de ser vendido em mercado? Não seria uma forma de administração creditícia e monetária que poderia contribuir para melhor sintonia do atual regime de metas de inflação, que pune a todos os setores com elevações gerais de juros, sem distinção daqueles que, não a pressionando, poderiam acrescentar mais produto e arrecadação do que dívida ao país?
Para isso é preciso desintoxicar, exorcizar o dogma opressivo que atribui ao sistema financeiro a condição de simples intermediário de recursos entre poupadores e tomadores de empréstimos. Essa idéia, que se amolda aos postulados de escassez e poupança, reforça a reverência a um mundo do "faz-de-conta". Que resiste à evidência de serem os bancos os maiores emissores ou anuladores de moeda, inibindo a percepção de que, dependendo da política econômica, um desses atributos pode vir a prevalecer sobre o outro. Um mundo fetichizado, que impõe escassez e sofrimento ao nos alienar da necessidade de formulações criativas que estimulem a emissão e circulação da moeda eletrônica bancária para mobilizar, via mercado, produção, emprego e consumo em abundância.


Domério Nassar de Oliveira, 46, é economista e diretor financeiro da Companhia de Processamento de Dados do Município de São Paulo (Prodam).

E-mail - domerio@prodam.sp.gov.br



Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Paulo Nogueira Batista Jr., que escreve às quintas-feiras nesta coluna.

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