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São Paulo, domingo, 02 de fevereiro de 2003

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

EUA: economia em marcha lenta

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

Quinta feira , 30 de janeiro, o Departamento do Comércio dos EUA informa: no quarto trimestre de 2002 a economia norte-americana cresceu 0,7%. O dado é preliminar e vai sofre duas revisões. Mas a nota para a imprensa sugere que a recuperação será lenta e insegura, sujeita a um outro mergulho recessivo.
A inversão do ciclo exuberante dos anos 90 começou, como já foi dito nesta coluna, de forma clássica, com a queda pronunciada dos gastos de investimento das empresas. No último trimestre, houve uma pequena evolução na demanda de equipamentos, mas prosseguiu o declínio no dispêndio com estruturas não-residenciais e outros gastos de capital.
Os consumidores ainda resistem, ajudados pela redução dos juros, que impulsionou a valorização dos imóveis residenciais e permitiu a rolagem a custos menores das dívidas contraídas no passado. Apesar do relativo desafogo financeiro das famílias, as taxas de expansão do consumo privado são cadentes.
O gasto público vem apresentando forte expansão, sobretudo na área da defesa, dando uma forte contribuição para melhorar o desempenho da economia. As exportações continuam em queda, apesar do dólar mais fraco.
A redução das taxas de juros dificilmente conseguirá reanimar os gastos de capital. Antes de voltar a investir, as empresas devem tratar das feridas: reduzir o endividamento, cortar a folha salarial e eliminar o excesso de capacidade. Essas providências explicam a recuperação dos lucros observada em algumas empresas. Mas o ajustamento microeconômico é danoso do ponto de vista do conjunto da economia: o corte de despesas com salários e aquisição de capital fixo e circulante vai aprofundar as tendências recessivas.
A contradição entre o inevitável ajustamento empresarial e seus indesejados efeitos macroeconômicos demonstra que falta muito para que a correção do nível de capitalização nas Bolsas torne compatíveis os preços das ações e os resultados esperados das empresas. Depois do crash de 1929, o mercado caiu durante três anos antes de chegar ao fundo do poço e levou 30 anos para alcançar o mesmo nível, em termos reais, de setembro de 1929. Naquela época, a atuação pouco tempestiva do Federal Reserve e as restrições impostas à política monetária pelas algemas do padrão-ouro contribuíram para o aprofundamento do colapso.
Hoje a ação do Fed tem sido mais rápida. As sucessivas reduções das taxas de juros seguraram o consumo, impulsionaram o mercado imobiliário e, de certa forma, impediram um ajustamento ainda mais desastroso dos preços nas Bolsas de Valores. A rápida inversão dos resultados fiscais (de superávit para déficit) e o aumento dos gastos do governo ajudaram a frear a queda da demanda agregada.
A autoridade monetária americana tenta calibrar a política para influir sobre as expectativas baixistas dos investidores. Na conjuntura americana, atuar sobre as expectativas significa segurar a queda de preços nos mercados de ativos, impedir uma retração forte do consumo e evitar a desvalorização abrupta do dólar.
É imperioso suavizar a queda de preços e impedir situações de iliquidez nos mercados com agentes muito alavancados. Isso implica ampliar a profundidade do mercado monetário, ou seja, apoiar os fundos e os bancos na operação de rearranjo de portfólios. Na prática, trata-se de oferecer papéis de qualidade (títulos do Tesouro) para os que pretendem sair das posições de maior risco, sem precipitar um "sell-off". Uma onda descontrolada de ordens de venda, como é óbvio, produziria uma forte contração da liquidez e deprimiria ainda mais os preços.
O BC tem de sinalizar para fundos e bancos que podem continuar "dando liquidez" ao mercado, sem que incorram em perdas patrimoniais. A política monetária só funciona de forma anticíclica quando a autoridade monetária satisfaz a demanda dos "market makers" por papéis mais líquidos e seguros. Ao promover a rápida queda das taxas de overnight, o Fed tenta impedir, ademais, que a estrutura a termo das taxas de juros fique reversa. Essa providência mantém a rentabilidade das carteiras desses agentes ao reduzir o custo de carregamento.
O superávit fiscal tornou-se disfuncional, quer do ponto de vista macroeconômico, quer da composição dos patrimônios privados. Os possuidores de riqueza, na crise, demandam papéis do governo como forma de preservação da riqueza líquida, substituindo, na margem, a aquisição de papéis privados.
A redução dos juros isoladamente não será suficiente para reanimar a economia, cujo setor privado está afogado em dívidas e em capacidade ociosa. E, nesse caso, têm razão os que recomendam um aumento significativo do gasto público, elevando o valor e a abrangência do seguro-desemprego e investindo na recuperação da infra-estrutura do país.
Os EUA conseguiram sustentar o crescimento elevado, em boa medida, graças à capacidade de seu sistema financeiro de expandir o crédito e de atrair capitais. A desvalorização das ações, a desaceleração da economia e a redução dos juros poderiam estimular um ajustamento das carteiras dos possuidores de riqueza, aumentando a participação dos ativos denominados em euro. As Bolsas americanas andam de lado, a produção industrial murcha, sem que apareçam os sinais de fuga dos ativos denominados em dólar. O mercado de ativos denominados em euro, um mercado grande, ainda não mostrou força suficiente para inverter a direção dos movimentos de capitais e, assim, garantir um maior poder de "seignorage" à moeda européia.
Este é um momento delicado para os gestores da economia global. O crescimento recente concentrou força demasiada nos EUA e tornou ainda mais assimétricas as relações entre os países e regiões. Por isso a marcha lenta da economia americana tende a espalhar seus efeitos negativos, não só nos emergentes, mas também na tríade desenvolvida. O Japão não consegue alçar vôo, encurralado entre a crise bancária e a incapacidade das empresas de se livrar do "excessivo" investimento dos anos 80. A Alemanha -maior economia da eurolândia- escorrega ladeira abaixo, revelando uma enorme dependência do desempenho norte-americano.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).


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