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LUÍS NASSIF
O culto do mistério
O arranjo começa com
acordes de sopros, seguidos
por celos ao fundo. Algumas notas ficam presas aos celos, como
ecoando no fundo da memória.
Depois da introdução, entram
os sons cadenciados de um violão e de um piano preparando a
entrada dos demais instrumentos. Quando a música inicia,
piano, oboés, flautas, celos se
juntam, tal qual Leo Peracchi
ensinou. O arranjador é o discípulo Eumir Deodato, o gênio
precoce que cedo nos abandonou por uma carreira vitoriosa
nos Estados Unidos.
Do meio das cortinas sonoras,
emergem duas das maiores vozes da música brasileira, Milton
Nascimento e Elis Regina, renascida na voz da filha Maria
Rita Mariano.
A música "Tristesse" (Milton
Nascimento e Telo Borges) não é
para ser ouvida sóbrio. Faz parte do CD "Pietá", o último lançamento de Milton e mostra o
gênio no auge da sua força criativa, em uma das mais lindas
músicas brasileiras de todos os
tempos. Pensei cá comigo: o
criador não morreu.
A primeira vez que vi o mestre
pessoalmente foi muitos anos
atrás, lá para o início dos anos
90, ele à beira de uma piscina
em um hotel de Angra dos Reis.
Cheguei devagar, para pedir a
benção. Sua timidez aguçou a
minha, balbuciei alguma coisa
daqui, ele resmungou outra dali
e bati em retirada.
De longe, fiquei observando o
negro tímido, fechado em copas,
que parecia fera acuada quando qualquer pessoa tentava
romper sua intimidade, ou ao
menos dar um alô. À noite, no
show que apresentou, parecia
um dínamo. Os baianos haviam
redescoberto os ritmos transcendentais do país. Mas o que Milton Nascimento produzia naquele palco de hotel ia além. O
meu batimento cardíaco, pelo
menos, passou a funcionar de
modo estranho, como se a batida do coração tivesse sido capturada pela pulsação dos ritmos
que vinham do palco. Na platéia, de uma moçada de 15 anos
a cinquentões, todos pareciam
hipnotizados pela eletricidade
que emanava do palco.
Na manhã seguinte, Milton
não apareceu na piscina. Deixei
de lado a economia, a palestra
que iria preparar, e fiquei imerso em indagações, tentando adivinhar os mistérios, a história
que haviam moldado aquela
energia, o sofrimento que, às vezes lamento, às vezes explosão,
produzira a mais significativa
obra da música brasileira, pós
Tom Jobim.
Não consegui, ninguém conseguiria decifrar o culto do mistério de Milton.
Depois, veio a doença, a perspectiva do fim, a quase despedida com os "Tambores de Minas", a recuperação, o show histórico com Gilberto Gil. A cada
novo lançamento, por conta do
que escrevi sobre ele, o mestre
me manda um exemplar autografado com palavras de carinho discreto, próprias dos de
Minas. E a cada encontro casual, como no Festival de Avaré,
em que se homenageou os 25
anos do Clube da Esquina, o
bloqueio da dupla timidez sempre impede mais do que um "tudo bem?".
A música inicial do CD, "A Feminina Voz do Cantor", de Milton e Fernando Brandt, revela
parte do mistério. "Sem as vozes
que ele ouviu / quando era
aprendiz / como pode sua voz
ser uma Elis?".
No "Pietá", o mestre mergulha
no passado, cutuca as feridas,
sugere parte da história. Na
contracapa, sua homenagem à
mãe de criação, a mulher que
lhe trouxe os sons das cantoras
que moldaram sua voz, conta
pouco, porque contar mais não
é necessário. "Eu que nasci no
Rio de Janeiro, em Laranjeiras,
fui levado de volta à Minas, terra natal de minha mãe de sangue, quando ela se foi. Era um
garoto de pouco mais de um
ano e fui recebido com muito
carinho pela minha família,
mas alguma coisa dentro de
mim havia se partido, e sangrava. Pietá, para mim, é minha
mãe de criação Lilia que, mesmo sem nenhum contato ou notícia minha durante muito tempo, pressentiu que algo de errado se passava comigo e veio me
socorrer. Foi ela quem cuidou de
mim e continuou a cuidar por
toda a vida, junto com meu pai
Josino".
O véu se levanta pouco, e volta
a se fechar. E, no duo de Milton
e Elis Mariano sobressai o vulto
de dona Lilia, guiando o cantor
maior pelas fendas e sombras da
vida, para o destino dolorido e
complicado que o mundo reserva para os gênios, e Minas relega os seus.
E-mail - LNassif@uol.com.br
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