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São Paulo, domingo, 02 de março de 2003

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

A herança da abertura financeira

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

Nos anos 90, o Brasil caiu na esparrela da abertura financeira "à outrance". Depois da estabilização de 1994, a abundante liquidez internacional juntou-se ao câmbio valorizado e aos juros altos para estimular o endividamento em dólares dos agentes domésticos e desatar a febre de aquisições de empresas brasileiras -publicas e privadas.
Essa aventura financeira e patrimonial é a maior responsável pela situação atual do país. A dívida privada em moeda forte e a transferência massiva de propriedade para os estrangeiros (ou seja, a ampliação do passivo externo líquido) são hoje -diante da retração do financiamento externo- fonte de instabilidade da taxa de câmbio, pois geram um fluxo importante de pagamentos (dá-lhe, AES!) e amortizações para o exterior.
Os departamentos econômicos dos bancos esmeram-se em demonstrar que os fluxos de entrada de capitais em 2003, incluindo os recursos do FMI, são suficientes para zerar os compromissos. Fecha, mas na conta do chá, à custa de um superávit comercial de economia prostrada e, pior ainda, com as reservas líquidas num nível perigoso, cerca de US$ 20 bilhões, ou cerca de cinco meses de importação.
Num mundo de incertezas, os choques cambiais se multiplicam para os devedores líquidos. Desferidos sobre o câmbio, os choques se transmitem aos preços indexados ao dólar e à fração da dívida interna idem. Para conter a inflação, o governo aumenta os juros e eleva o superávit fiscal primário para estabilizar a relação dívida/ PIB. O contubérnio entre juros reais elevados na ponta do crédito e superávit primário derruba o PIB, alem de afetar a trajetória da dívida indexada à taxa Selic. A relação dívida/PIB parece, então, escapar ao controle. O risco-país salta para uma pontuação improvável: os "investidores" e seus arautos tupiniquins gritam, simulando pânico: exigem, na verdade, o conforto de um superávit primário ainda mais alentado.
Entre os realmente assustados com a situação, a palavra de ordem -ao que parece acatada pela maioria- é conseguir um superávit ainda maior em moeda forte para liberar a taxa de juros da função de acalmar o câmbio e a inflação. Vivemos realmente uma situação difícil: o superávit atual na conta de comércio vem sendo obtido, sobretudo, à custa da queda das importações, ainda que nos últimos meses se observe uma animadora elevação das exportações. O superávit só será saudável caso as exportações e as importações cresçam, as exportações acima das importações. Só assim o aumento do saldo comercial é compatível com o crescimento da renda e do emprego domésticos. A economia estaria, nessa hipótese, crescendo e gerando um superávit com o resto do mundo -portanto aumentando o lucro macroeconômico- mediante a expansão das vendas líquidas nos mercados externos.
Fácil de dizer, difícil de fazer. Primeiro, problemas do "lado da oferta". Como vem sendo revelado nos últimos dias, muitos setores vão precisar de investimentos para atender simultaneamente ao crescimento demandas interna e externa. A capacidade instalada na siderurgia, petroquímica, alumínio, papel e celulose e em outros insumos praticamente não se expandiu nos últimos anos. Não vai suportar um aumento simultâneo das exportações e da demanda interna sem novos investimentos. Isso para não falar da geração e transmissão de energia. Hoje está "sobrando" capacidade de geração por conta do desempenho medíocre da economia. Mas vai faltar, caso o crescimento retome, de forma sustentada, um ritmo superior ao atual.
Esses investimentos demandam importações, sobretudo de bens de capital. Esse setor não está em condições de satisfazer a procura: não só sofreu um relativo atraso tecnológico durante os últimos 20 anos mas muitos subsetores desapareceram ou encolheram, diante da queda vertiginosa dos gastos de investimento do setor público. Assim, mesmo nas áreas em que a especialização brasileira era notória, a retomada do crescimento vai exigir novos investimentos.
O segundo problema diz respeito à economia mundial. Se a taxa de crescimento global for muito baixa, provavelmente a possibilidade de aumentar as exportações continuará dependendo da desvalorização real do câmbio, da baixa absorção interna e da contenção das importações.
Está claro agora que a desaceleração da economia norte-americana tem uma característica muito especial. Ela não foi precipitada pela política econômica com o propósito de abortar repique da inflação, como em outros episódios semelhantes do pós-guerra. A origem da crise está nos "excessos" do setor privado. As grandes corporações cortaram a exuberante escalada de gastos de investimento (e de endividamento) nos setores de nova tecnologia, agora afogados em capacidade ociosa. Os consumidores continuam gastando, estimulados pela baixa de juros e pelo efeito-riqueza proporcionado pela bolha dos imóveis residenciais. Mas não há como manter isso.
Seja como for, é perigoso alimentar fantasias. Nos próximos anos, é difícil uma repetição das condições que sustentaram a farra de dólares da segunda metade dos 90. O Brasil tem um grave problema de liquidez em moeda forte. Precisaria de uma ponte para atravessar este período. O crédito externo está se recuperando a conta-gotas e muitos devedores -os que conseguem- estão refinanciando sua dívidas com empréstimos de curto prazo. A volta do financiamento externo em volume suficiente está fora de nosso controle. O Brasil não pode esperar mais quatro anos para reduzir os juros.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor titular de Economia da Unicamp. Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).


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