São Paulo, domingo, 02 de abril de 2000


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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Beleza americana

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

As previsões que antecipam uma severa "correção de preços" nos mercados de valores do mundo inteiro, sobretudo nas exuberantes Bolsas americanas, vêm sofrendo derrotas consecutivas. Nas crises da Ásia e da Rússia e em outros episódios menos votados, os índices Dow Jones e Nasdaq ameaçaram cumprir as profecias dos baixistas. Dobraram várias vezes os joelhos mas não desabaram. Logo depois encetavam outra escalada, atingindo os festejados 10 mil pontos para depois romper a barreira dos 11 mil.
As hipóteses sobre a "Nova Era" ou a "Nova Economia" -ganhos fantásticos de produtividade decorrentes de inovações tecnológicas e organizacionais- recuperaram o prestígio e passaram a frequentar as análises dos eufóricos "altistas". Os baixistas tiveram que recolher as trombetas que pretendiam anunciar o Juízo Final para os especuladores.
Muitos observadores entendem que, diferentemente do que ocorreu em 1987, uma reversão do atual ciclo de "inflação de ativos" deverá acarretar efeitos reais. Entre eles está a violenta contração do investimento e do consumo e o aparecimento de desequilíbrios patrimoniais, tanto para as empresas quanto para as famílias. Esses desequilíbrios permanecem encobertos na etapa altista do ciclo, quando ocorre a rápida valorização das ações das empresas e de seu portfólio de ativos, bem como do patrimônio financeiro (e agora imobiliário) das famílias. Essa sensação de riqueza contamina as empresas e as famílias, incitando a inclinação ao endividamento, impulsionando o consumo, o investimento produtivo e a própria valorização fictícia da riqueza financeira.
A expectativa de valorização de ativos é exacerbada pelo descompasso entre a evolução da oferta, que vem sendo restringida pela retirada de ações do mercado e a crescente atração dos fluxos de crédito para a circulação financeira. A confirmação dos ganhos de capital antecipados reforça a febre especulativa e estimula as famílias, as empresas, os bancos e demais intermediários, com posições próprias, a aumentar o seu grau de "alavancagem" nos mercados financeiros (as margens de endividamento se ampliam), favorecendo a progressão do surto "inflacionário".
A economia começa, portanto, a se "aquecer", impulsionada pela ampliação do consumo e do investimento das empresas. Intensifica-se a pressão sobre o crédito, aumentam os níveis de endividamento e isso, por sua vez, acelera a escalada de valorização da riqueza financeira e produtiva. A isso o economista francês André Orléan chamou de "dinâmica auto-referencial" em seu livro "Le Pouvoir de la Finance".
A rápida ampliação do déficit em transações correntes vem impedindo que a força da demanda interna impulsionada pela valorização da riqueza possa se materializar numa aceleração inflacionária, ainda que os salários reais estejam mostrando uma sensível inclinação para subir. A recuperação européia vem sendo contrabalançada pela longa recessão japonesa e pelas desvalorizações ocorridas nos países emergentes. Essa conjuntura vem permitindo um comportamento favorável dos preços das commodities agrícolas e industriais -à exceção do petróleo.
Os Estados Unidos, por causa da sua capacidade de atrair capitais para os seus mercados de ações em alta, têm conseguido combinar um dólar forte com taxas de juros moderadas, apesar da rápida ampliação do déficit em transações correntes e do passivo externo. Os capitais especulativos contavam (e ainda contam) com um mercado amplo e profundo que tem funcionado como porto seguro nos momentos de grande instabilidade ou quando a confiança fraqueja em outros mercados. A existência de um volume ainda respeitável de papéis do governo e das empresas americanas -uns reputados por seu baixo risco e excelente liquidez, outros pelas expectativas de valorização- tem permitido que a reversão dos episódios de desvalorização de ativos estrangeiros seja absorvida por movimentos compensatórios no preço dos papéis americanos.
Esses movimentos de capitais vêm sustentando o dólar, reforçando a exuberante valorização das ações e ampliando o poder de "seignoriage" dos Estados Unidos. Essa é uma das razões pelas quais vem sendo possível prolongar o crescimento norte-americano sem inflação. O país dominante, mesmo com déficits crescentes, pode se beneficiar de uma moeda forte, por conta da atração exercida pelos ativos denominados em dólares.
Na eventualidade da proclamada "correção de preços" nas Bolsas de Valores o Fed estará diante de um dilema: 1) reduzir os juros e ampliar a liquidez para conter a deflação de ativos e facilitar a rolagem das dívidas; ou 2) usar a política monetária para defender o dólar de uma provável desvalorização, ampliando os riscos de deslocamentos entre os estoques de riqueza denominados em moedas distintas. As antecipações quanto aos movimentos dos diferenciais de juros e seus efeitos sobre alterações nas taxas de câmbio podem provocar mudanças nos preços dos ativos, da mesma forma que as mudanças "autônomas" nos preços dos ativos podem afetar as taxas de câmbio e as relações entre taxas de juros nas diferentes moedas.
Neste sistema de taxas de câmbio flutuantes, ampla mobilidade de capitais as taxas de juros e de câmbio se tornam "endógenas" e ficam mais sensíveis às bruscas mudanças de expectativa dos possuidores de riqueza. Não é de espantar que nesse sistema seja mais frequente a ocorrência de graves problemas de liquidez, "resolvidos" por meio de violentas quedas de preços dos ativos e desvalorização das moedas.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 57, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).



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