São Paulo, domingo, 02 de abril de 2000


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CERVEJAS
Para conselheiro, uso de distribuição da AmBev quebra obstáculo para entrada de empresas no Brasil
Decisão do Cade abre país para múltis

DAVID FRIEDLANDER
da Reportagem Local

A criação da AmBev, fusão das cervejarias Brahma e Antarctica, abre uma brecha para que multinacionais do setor possam entrar no mercado brasileiro. O segredo está nas obrigações que as duas cervejarias terão de assumir no Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) se quiserem juntar suas garrafas.
O Cade exigiu que a AmBev venda a marca Bavaria e cinco fábricas, uma em cada região do país. Mais: durante quatro anos, o próximo dono da Bavaria poderá distribuir seus engradados usando a rede da AmBev, que cobre 90% do 1 milhão de bares, restaurantes e supermercados do país.
"O grande obstáculo à entrada das multinacionais da cerveja sempre foi o custo de montar uma rede de distribuição que alcance todo o Brasil", diz Marcelo Calliari, 34, um dos conselheiros do Cade que deram sinal verde à fusão na última quarta-feira.
A marca Bavaria, as fábricas e a distribuição garantida formam um pacote avaliado em R$ 500 milhões por analistas de mercado. Quem arrematar o conjunto terá condições de começar a operar no dia seguinte, com participação de 5% do mercado.
Com o resultado do julgamento, surgiu a especulação de que o pacote teria sido feito sob encomenda para beneficiar a cervejaria portuguesa Cintra. Tudo porque o Cade exige que os candidatos à compra de Bavaria não tenham mais que 5% do mercado.
Isso tirou Kaiser e Schincariol do páreo. E, entre as pequenas cervejarias, a Cintra aparenta ser a única com cacife suficiente para entrar na disputa. "Essa leitura é equivocada", afirma Calliari.
A seguir, os principais trechos da entrevista com Calliari.

Folha - A decisão do Cade criou a especulação de que o conselho arredondou a bola para a portuguesa Cintra...
Marcelo Calliari
- Essa é uma leitura completamente equivocada da decisão. Como Kaiser e Schincariol não poderão comprar o pacote, e o senso comum diz que a Cintra é a única das pequenas cervejarias com chances de se candidatar, algumas pessoas aparentemente imaginaram que nosso objetivo é favorecer a Cintra. Só que ao excluir a Kaiser e a Schincariol nós abrimos o pacote para o mundo inteiro.

Folha - Por que a Kaiser e a Schincariol foram proibidas de comprar a Bavaria e as fábricas que a AmBev terá de vender?
Calliari
- O raciocínio é o seguinte: já que a fusão de Brahma e Antarctica elimina um concorrente, quisemos estimular o aparecimento de uma nova cervejaria, de porte nacional. A Kaiser e a Schincariol estão aí, são eficientes e estão crescendo. Nós queremos é uma nova empresa, que já comece com força e possa concorrer com a AmBev.

Folha - A impressão é que o Cade deixou o trânsito livre para os estrangeiros. A Kaiser e a Schincariol, que possuem tamanho para comprar o pacote da AmBev, estão impedidas de fazê-lo. E as pequenas cervejarias, que podem se candidatar à compra, não têm dinheiro para entrar nesse jogo.
Calliari
- Mas não precisa ser uma cervejaria. A Brahma, por exemplo, foi comprada pelo Garantia anos atrás. O Garantia é um banco de investimentos, não tinha nada a ver com cerveja até comprar a Brahma. Mas é evidente que as multinacionais do setor são candidatos muito fortes.

Folha - O Cade montou o pacote pensando nelas?
Calliari
- Só nelas, não. Mas o pacote tem tudo para interessá-las. Mais importante até do que as fábricas e a marca Bavaria é a rede de distribuição. As pessoas não percebem a importância disso. A dificuldade de montar uma rede para entregar cerveja num país enorme como o Brasil sempre foi a grande barreira à entrada das cervejarias multinacionais.
É por isso que gigantes como as norte-americanas Miller e Budweiser procuraram parceiros nacionais para entrar no país: precisavam de sua distribuição. Quem ficar com o pacote terá à disposição a rede da AmBev, que cobre 90% do cerca de 1 milhão de pontos-de-venda que existem no país. Isso significa acesso a todo mundo que toma cerveja no Brasil.

Folha - O que acontece se não aparecer nenhum comprador?
Calliari
- Isso irá depender muito do preço que a AmBev vai pedir. Se chutarem muito alto, não aparece ninguém mesmo. Só que o Cade criou punições para forçá-los a efetivamente realizar a venda. Se o negócio não for fechado em oito meses, o conselho vai colocar um interventor na empresa. E esse interventor não estará preocupado com o lucro da AmBev. Sua missão será criar condições para o negócio. Portanto, se a AmBev não se esforçar, pode sair perdendo.

Folha - E se mesmo com um preço razoável ninguém se interessar pela marca Bavaria e pelas fábricas?
Calliari
- Acho isso muito improvável. O Brasil tem o quinto maior consumo de cerveja do mundo e ainda há muito espaço para crescer. Além disso, há vários grupos internacionais que têm crescido muito à base de aquisições.
Por exemplo, a SAB sul-africana, quinta do mundo, tem seguido uma política agressiva de compra de fábricas já instaladas. A Interbrew, da Bélgica, está fazendo a mesma coisa. Não estou dizendo que são esses dois, mas há muitos compradores potenciais.

Folha - O pacote poderá ser desmembrado? O candidato, por exemplo, poderá comprar apenas a marca Bavaria ou a marca e só duas das cinco fabricas...
Calliari
- Ao montar esse pacote a intenção do Cade foi permitir a entrada de um competidor de porte nacional. Ele terá uma fábrica em cada região do país, uma marca como a Bavaria, que já é conhecida no Brasil inteiro, e a rede de distribuição, que é o que mais importa nesse tipo de negócio. Poderemos discutir uma ou outra alteração, mas o objetivo é vender o pacote fechado.

Folha - E as cervejarias regionais, que são minúsculas perto da AmBev, Kaiser e companhia? Elas não serão prejudicadas?
Calliari
- Não necessariamente. Se a AmBev quiser aumentar muito os preços, por exemplo, elas serão beneficiadas. O consumidor muda para uma marca mais barata. Se, por outro lado, a AmBev diminuir seus preços para eliminar a concorrência, ela será julgada e punida pelo Cade.

Folha - O sr. ficou satisfeito com a decisão do conselho?
Calliari
- Na verdade, eu tinha uma posição um pouco mais rigorosa. Minha proposta era que, além da Bavaria, fossem incluídas no pacote outras duas marcas, a Bohemia e a Polar. São marcas com pouca participação de mercado, mas dariam ao comprador mais força para se expandir. Com acesso à rede de distribuição da AmBev, elas poderiam ser oferecidas em todo o país. Fui voto vencido, mas, se não estivesse, não teria votado a favor.

Folha - Em algum momento ficou em dúvida?
Calliari
- Considerei essa fusão prejudicial ao mercado, mas procurei maneiras de corrigir os efeitos anticompetitivos da operação e permitir que ela passasse. As fusões tornam as empresas mais eficientes e isso é bom para a economia. O importante é permitir que as empresas se associem para melhor, mas coibir os abusos.

Folha - As acusações de tentativas de subornar membros do Cade não podem prejudicar a legitimidade da decisão?
Calliari
- Não. Não existem informações que coloquem nenhum membro do conselho sob suspeita.

Folha - O sr. já chegou a ser procurado por alguém com uma conversa suspeita?
Calliari
- Nunca aconteceu. Não há espaço para isso. Eu nunca recebo ninguém sozinho na minha sala. Minha agenda é pública, as pessoas sabem com quem eu me encontro.

Folha - O sr. gosta de cerveja?
Calliari
- Gosto.

Folha - Qual é sua marca predileta?
Calliari
- Prefiro não contar.


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