São Paulo, quinta-feira, 02 de abril de 2009

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DAVID PILLING

As bravatas de Pequim sobre o dólar


A menos que a China considere vender os ativos que detém nos EUA, uma queda no dólar só traria prejuízos teóricos

ALGUMAS semanas atrás, cinco embarcações chinesas cercaram um navio da Marinha de guerra dos EUA ao largo da ilha de Hainan, na China. Quando o navio hidrográfico americano reagiu com mangueiras de alta pressão, os tripulantes das embarcações chinesas despiram as roupas e teriam abaixado as calças e mostrado os traseiros aos norte-americanos.
Essa confrontação foi cuidadosamente calibrada. Ainda que ficasse bem aquém de um choque militar, enviou uma mensagem de que Pequim não estava preparada para tolerar missões rotineiras de espionagem americanas em águas que considera como territoriais.
No mundo mais cerebral da política monetária, Zhou Xiaochuan, presidente do BC chinês, também enviou um sinal cuidadosamente calibrado. Embora não tenha chegado a exibir o traseiro, escreveu estudo em que propunha substituir o dólar por uma moeda internacional de reserva. Sugeriu expandir o escopo e a função dos Direitos Especiais de Saque (DES), uma unidade contábil empregada pelo FMI.
A proposta de Zhou não surgiu do nada. Nas últimas semanas, Pequim vem expressando preocupação quanto ao dólar, moeda que teme possa ser ainda mais diluída por emissões ainda mais irresponsáveis de dinheiro realizadas com o objetivo de resgatar uma economia desgastada. Cerca de 70% das reservas cambiais chinesas de quase US$ 2 trilhões são mantidas em dólares.
Pequim ao mesmo tempo vem tomando medidas para reforçar a relevância de sua moeda. Nesta semana, Zhou assinou acordo de "swap" cambial de 70 bilhões de yuans (US$ 10 bilhões) com a Argentina, para permitir que este país pague contas comerciais em yuan.
Que existe um elemento de teatro na proposta de Pequim pode ser deduzido com base em vários fatores.
Primeiro, poucos devem esperar que os DES desempenhem o papel de supermoeda. Para isso, a instituição emissora, o FMI, teria de operar um BC. E também seria necessário, com o devido respeito ao franco suíço e ao iene japonês, garantir a moeda com um Exército e uma Marinha.
Segundo, é evidente que a moeda chinesa deveria desempenhar maior papel internacional. Mas, caso a moeda chinesa fosse plenamente conversível, outros países certamente manteriam porção pequena, mas respeitável, de suas reservas cambiais em yuan, mais ou menos como já fazem com o iene e o euro.
Terceiro, os pesadelos de Pequim quanto à possibilidade de que uma queda no dólar reduza suas reservas cambiais são exagerados. A reserva de títulos do Tesouro americano detida pela China não é investimento. A menos que Pequim esteja considerando vender os ativos que detém nos EUA, uma queda no dólar traria prejuízos puramente teóricos.
Isso nos conduz ao último ponto. O estudo de Zhou desvia a atenção da questão fundamental, a de que a China não deteria imensas reservas em dólar caso não tivesse adotado políticas específicas -expansão baseada em exportações e sustentada por um yuan de cotação previsível.
Pouco antes do estudo sobre o fim do dólar, Zhou havia publicado artigo sobre os índices elevados de poupança, que representam o outro lado da moeda ante a captação excessiva praticada nos EUA. A China rejeita a sugestão de que seu "excedente de poupança" esteja vinculado a gastos excessivos em outros lugares.
Zhou argumenta que, ao contrário dos argumentos mecanicistas de que os índices de poupança podem ser influenciados por decisões de política econômica, a propensão chinesa a poupar tem raízes culturais, especificamente o confucionismo, que "valoriza a frugalidade, a autodisciplina e a antiextravagância". Hábitos profundos como esse seriam, por definição, extremamente difíceis de mudar. A mensagem é clara: cabe aos EUA ceder.


DAVID PILLING é colunista do "Financial Times".

Tradução de PAULO MIGLIACCI

Excepcionalmente, hoje, a coluna de PAULO NOGUEIRA BATISTA JR. não é publicada.


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