São Paulo, quinta, 2 de abril de 1998

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O povo que adorava comer telefone celular

ALOYSIO BIONDI
Era uma vez um povo encantador, de um país tropical, dotado de paciência e resignação capazes de encantar qualquer governante democrata ou déspota esclarecido. Tinha uma única exigência esse povo encantador: queria porque queria comer telefones celulares no café da manhã, no almoço e no jantar. O governo, magnânimo, pensando no povo e não em grupos "amigos do rei", dobrava-se aos anseios coletivos. Canalizava bilhões e bilhões para o sistema de telecomunicações, necessário para dar suporte ao funcionamento dos serviços de telefones celulares (e também fixos), a cargo de empresas privadas que se candidatavam, em leilões, a explorá-los.
Em 1995, o governo desse país, que poderia chamar-se Bovinolândia, gastou uns R$ 2 bilhões em telecomunicações; em 1996, foram R$ 3,5 bilhões; em 1997, de R$ 7 bilhões a R$ 8,5 bilhões. O povo, simplesmente, d-e-l-i-r-a-v-a com a gastança. Empresários, classe média e povão não se importavam que o governo cortasse, sonegasse verbas para toda e qualquer outra necessidade dos cidadãos -ou da economia.
Dinheiro para produzir energia em 1997? Só R$ 2,5 bilhões. Para produzir petróleo, só R$ 2,5 bilhões. Para emprestar a pequenas e médias empresas, por intermédio de um tal de Serviço para Enganar os Bovinos, Renitentes e Abandonados Empresários (Sebrae)? Só R$ 30 milhões (com m mesmo), no principal Estado da Bovinolândia. Dinheiro para 4 milhões de pequenos agricultores? Só R$ 1,4 bilhão ao ano. Para centenas de milhares de pequenas e médias empresas tentarem exportar, diante da retração do mercado interno? Só R$ 300 milhões. Claro que, se as verbas para os outros setores fossem ampliadas, haveria geração de empregos, renda, consumo, crescimento econômico.
"Mas, para que isso?", questionava, sempre às gargalhadas, a equipe econômica da Bovinolândia. "Para que política econômica, política industrial? Nós sabemos que o povo quer é telefone celular. O povo nem se importa se falta dinheiro para a saúde; se seus filhos, pais, irmãos, morrem de dengue, tuberculose (10º lugar no mundo) e outras doenças do Terceiro Mundo; se aposentadorias, salário mínimo, vencimentos do funcionalismo são vergonhosamente achatados; se empresas quebram às pencas e o desemprego, miséria, violência avançam; se, por falta de apoio à agricultura, ou por causa do massacre da agricultura, agora o preço do feijão, do arroz e do óleo de soja dispararam. Tudo o que o povo quer é celular. No café, no almoço e no jantar".
Viva a telefonia
Ainda bem, claro, que o Brasil não se parece com esse país de ficção, a Bovinolândia. Por isso mesmo, os empresários, a classe média e o povão estão dedicando a maior atenção às prioridades do governo FHC e, em especial, aos gastos e à política oficial na área de telecomunicações -em particular, da telefonia celular. Alguns aspectos estão merecendo reflexão da sociedade e pressões para que o Congresso os analise, antes que surjam novos casos Light.
Capital paulista - O consórcio vencedor do leilão, que vai explorar a telefonia celular na região da Grande São Paulo, se dispôs a pagar R$ 2,6 bilhões pela concessão, muito acima do preço pedido pelo governo. Comemorações delirantes. Agora, na semana passada, o vencedor obteve o maior empréstimo externo já concedido a um grupo no Brasil: US$ 1,75 bilhão. Mais comemorações delirantes. Ou insensatas? Afinal, o prazo de pagamento será de tão-somente dois e três anos. E as taxas de juros? Altas ou baixas? Não se sabe. Num comportamento intrigante, a imprensa não forneceu essa informação. Mas deu uma pista, inquietante: as taxas de juros foram fixadas "de acordo com o risco político" (e econômico) que o Brasil oferece, no entender dos banqueiros internacionais. E mais: poderão variar, serem aumentadas se esse risco crescer. Óbvio, então, que os juros foram altos. Tão altos a ponto de precisarem ser escondidos?
Interior de São Paulo - O grupo vencedor ofereceu R$ 1,3 bilhão pela concessão. Deles, pagou R$ 530 milhões à vista, comprometendo-se a pagar o saldo de 60%, algo como R$ 770 milhões, também em três parcelas anuais, isto é, apenas em três anos.
Atenção: segundo a repórter Elvira Lobato, desta Folha, o grupo vencedor não tinha os R$ 530 milhões do sinal à vista. Deles, nada menos de US$ 300 milhões foram fornecidos pela multinacional Ericsson, que obteve um empréstimo naquele valor, no exterior, e o repassou ao consórcio. Em troca, a empresa sueca obteve um contrato de R$ 360 milhões... para instalar o sistema.
Em conclusão: os grupos que "compraram" as concessões não têm recursos próprios, recorrem a financiamentos. Devem pagá-los, e as parcelas do governo, em dois a três anos. De onde virá o dinheiro? Das tarifas? Da venda de linhas? Ou já está tudo combinado com o governo, e o BNDES socorre a quem precisar no ano que vem? Ah, sim: quem acredita nessa lista de espera de 2 milhões, 3 milhões, 4 milhões de pessoas na fila dos celulares e dos telefones fixos? Essas filas são enganosas, esse mercado fantástico não existe. Há famílias que fizeram três, quatro, cinco, oito inscrições para terem a chance de, nos sorteios, receber um telefone mais cedo. No final, como já aconteceu com o telefone fixo da Telesp (e foi escondido) haverá enorme parcela de desistência. Aí, haverá desculpas para o "socorro"? E os bilhões despejados pelo governo no setor nos últimos três anos que poderiam ser aplicados produtivamente em outras áreas? O Congresso não tem nada a dizer? (Além de "amém, César", óbvio).


Aloysio Biondi, 60, é jornalista econômico. Foi editor de Economia da Folha. É diretor-geral do grupo Visão. Escreve às quintas-feiras no caderno Dinheiro.



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