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O povo que adorava comer telefone celular
ALOYSIO BIONDI
Era uma vez um povo encantador, de um país tropical, dotado de paciência e resignação
capazes de encantar qualquer
governante democrata ou déspota esclarecido. Tinha uma
única exigência esse povo encantador: queria porque queria
comer telefones celulares no café da manhã, no almoço e no
jantar. O governo, magnânimo,
pensando no povo e não em
grupos "amigos do rei", dobrava-se aos anseios coletivos. Canalizava bilhões e bilhões para
o sistema de telecomunicações,
necessário para dar suporte ao
funcionamento dos serviços de
telefones celulares (e também
fixos), a cargo de empresas privadas que se candidatavam, em
leilões, a explorá-los.
Em 1995, o governo desse país,
que poderia chamar-se Bovinolândia, gastou uns R$ 2 bilhões
em telecomunicações; em 1996,
foram R$ 3,5 bilhões; em 1997,
de R$ 7 bilhões a R$ 8,5 bilhões.
O povo, simplesmente,
d-e-l-i-r-a-v-a com a gastança.
Empresários, classe média e povão não se importavam que o
governo cortasse, sonegasse verbas para toda e qualquer outra
necessidade dos cidadãos -ou
da economia.
Dinheiro para produzir energia em 1997? Só R$ 2,5 bilhões.
Para produzir petróleo, só R$
2,5 bilhões. Para emprestar a
pequenas e médias empresas,
por intermédio de um tal de
Serviço para Enganar os Bovinos, Renitentes e Abandonados
Empresários (Sebrae)? Só R$ 30
milhões (com m mesmo), no
principal Estado da Bovinolândia. Dinheiro para 4 milhões de
pequenos agricultores? Só R$
1,4 bilhão ao ano. Para centenas de milhares de pequenas e
médias empresas tentarem exportar, diante da retração do
mercado interno? Só R$ 300 milhões. Claro que, se as verbas
para os outros setores fossem
ampliadas, haveria geração de
empregos, renda, consumo,
crescimento econômico.
"Mas, para que isso?", questionava, sempre às gargalhadas, a equipe econômica da Bovinolândia. "Para que política
econômica, política industrial?
Nós sabemos que o povo quer é
telefone celular. O povo nem se
importa se falta dinheiro para a
saúde; se seus filhos, pais, irmãos, morrem de dengue, tuberculose (10º lugar no mundo)
e outras doenças do Terceiro
Mundo; se aposentadorias, salário mínimo, vencimentos do
funcionalismo são vergonhosamente achatados; se empresas
quebram às pencas e o desemprego, miséria, violência avançam; se, por falta de apoio à
agricultura, ou por causa do
massacre da agricultura, agora
o preço do feijão, do arroz e do
óleo de soja dispararam. Tudo o
que o povo quer é celular. No
café, no almoço e no jantar".
Viva a telefonia
Ainda bem, claro, que o Brasil
não se parece com esse país de
ficção, a Bovinolândia. Por isso
mesmo, os empresários, a classe
média e o povão estão dedicando a maior atenção às prioridades do governo FHC e, em especial, aos gastos e à política oficial na área de telecomunicações -em particular, da telefonia celular. Alguns aspectos estão merecendo reflexão da sociedade e pressões para que o
Congresso os analise, antes que
surjam novos casos Light.
Capital paulista - O consórcio vencedor do leilão, que vai
explorar a telefonia celular na
região da Grande São Paulo, se
dispôs a pagar R$ 2,6 bilhões
pela concessão, muito acima do
preço pedido pelo governo. Comemorações delirantes. Agora,
na semana passada, o vencedor
obteve o maior empréstimo externo já concedido a um grupo
no Brasil: US$ 1,75 bilhão. Mais
comemorações delirantes. Ou
insensatas? Afinal, o prazo de
pagamento será de tão-somente
dois e três anos. E as taxas de
juros? Altas ou baixas? Não se
sabe. Num comportamento intrigante, a imprensa não forneceu essa informação. Mas deu
uma pista, inquietante: as taxas de juros foram fixadas "de
acordo com o risco político" (e
econômico) que o Brasil oferece, no entender dos banqueiros
internacionais. E mais: poderão
variar, serem aumentadas se
esse risco crescer. Óbvio, então,
que os juros foram altos. Tão
altos a ponto de precisarem ser
escondidos?
Interior de São Paulo - O
grupo vencedor ofereceu R$ 1,3
bilhão pela concessão. Deles,
pagou R$ 530 milhões à vista,
comprometendo-se a pagar o
saldo de 60%, algo como R$
770 milhões, também em três
parcelas anuais, isto é, apenas
em três anos.
Atenção: segundo a repórter
Elvira Lobato, desta Folha, o
grupo vencedor não tinha os R$
530 milhões do sinal à vista.
Deles, nada menos de US$ 300
milhões foram fornecidos pela
multinacional Ericsson, que obteve um empréstimo naquele
valor, no exterior, e o repassou
ao consórcio. Em troca, a empresa sueca obteve um contrato
de R$ 360 milhões... para instalar o sistema.
Em conclusão: os grupos que
"compraram" as concessões
não têm recursos próprios, recorrem a financiamentos. Devem pagá-los, e as parcelas do
governo, em dois a três anos.
De onde virá o dinheiro? Das
tarifas? Da venda de linhas? Ou
já está tudo combinado com o
governo, e o BNDES socorre a
quem precisar no ano que vem?
Ah, sim: quem acredita nessa
lista de espera de 2 milhões, 3
milhões, 4 milhões de pessoas
na fila dos celulares e dos telefones fixos? Essas filas são enganosas, esse mercado fantástico não existe. Há famílias que
fizeram três, quatro, cinco, oito
inscrições para terem a chance
de, nos sorteios, receber um telefone mais cedo. No final, como já aconteceu com o telefone
fixo da Telesp (e foi escondido)
haverá enorme parcela de desistência. Aí, haverá desculpas
para o "socorro"? E os bilhões
despejados pelo governo no setor nos últimos três anos que
poderiam ser aplicados produtivamente em outras áreas? O
Congresso não tem nada a dizer? (Além de "amém, César",
óbvio).
Aloysio Biondi, 60, é jornalista econômico.
Foi editor de Economia da Folha. É diretor-geral do grupo Visão. Escreve às quintas-feiras
no caderno Dinheiro.
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