São Paulo, domingo, 02 de junho de 2002

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LUÍS NASSIF

O avô do Brasil

Estava em Natal quando recebi a notícia da morte de Mário Lago. À noite, meu amigo e colega jornalista Roberto Guedes me deu um presente inesquecível, juntando em uma mesma roda o regional "Oficina de Música", com quem toquei dois anos atrás, e minha antiga admiração, Ivanildo, "o sax de ouro", rei dos bailes de 15 anos do Nordeste.
Comecei a noite recebendo informações preciosas sobre a música do Rio Grande do Norte, sobre Hianto de Almeida, precursor da bossa nova, e os trios Irakitan e Maraiá, sobre K-Ximbinho, o autor de choros clássicos como "Sonoroso", e alguns autores conhecidos apenas localmente, agora registrados no "Dicionário da Música do Rio Grande do Norte", trabalho de Leide Câmara, ali presente.
No bar da livraria Sparta juntou-se parte expressiva da cultura potiguar. Zé Dias me contava histórias da música local, os músicos interpretavam K-Ximbinho e eu me encantava com a federação musical brasileira, com as preciosidades que cada Estado oferece como licor raro aos iniciados que vêm de fora.
Aí Ivanildo tirou o seu sax, apresentou parte de sua banda, todos fisicamente nordestinos, entranhadamente nordestinos, cara de tocadores de coco, de puxadores de congo e, assim como K-Ximbinho, trazendo a música mais contemporânea para seus instrumentos. Tocaram Roberto Carlos, Ivanildo se lembrou de temas de Charlie Parker e iniciou a homenagem ritual a Mário Lago. Tocou, como em surdina, "Nada Além", de Lago e Custódio Mesquita.
Naquele momento, por todo o Brasil, a imensa religião dos cultivadores da música popular brasileira, de maestros a cantores de churrascaria, homenageava um de seus maiores. A rapaziada lamentava a morte do ator de televisão que sempre fazia o velhinho simpático, avô de todos nós. Os velhos militantes do Partidão lamentavam um de seus quadros mais expressivos. Mas cabia aos músicos a maior das homenagens: interpretar seus clássicos.
Mário Lago nasceu em 26 de novembro de 1911 no Rio de Janeiro, filho do maestro Antônio Lago. Aos 15 anos publicou seu primeiro poema. Depois, tornou-se galã de teatro de comédia. Sua carreira começou no teatro. Em 1933 foi o mais jovem autor de peças teatrais do Rio, com a revista "Flores à Cunha", sátira ao gaúcho Flores da Cunha, estrelada por Araci Cortes.
Foi ator dos mais consagrados, no início como galã com Joracy Camargo, passando pela rádio-novela, sendo expulso da rádio Nacional pelo movimento militar de 1964 e sendo resgatado para a arte pela TV Globo, onde estreou em 1968 em "O Sheik de Agadir".
Não há nada de politicamente mais brasileiro e carioca do que sua prisão na mesma cela que Carlos Lacerda. Ele, comunista ao extremo, Lacerda, ferrenhamente anticomunista, trataram-se com respeito mútuo e criaram solidariedade em torno de... empadinhas. Viram alguém comendo empadas e passaram dias com água na boca, esperando a libertação. Libertados, logo correram atrás de empadinhas de botecos.
Estreou na música colocando letra em "Menina, Eu Sei de uma Coisa", com Custódia Mesquita, gravado em 1935 por Mário Reis. Três anos depois, Orlando Silva gravaria seu primeiro clássico, "Nada Além" ("Nada além / nada além de uma ilusão"), também em parceria com Mesquita. Com Ataulfo Alves compôs mais dois clássicos, "Ai Que Saudades da Amélia" e "Atire a Primeira Pedra". Com Roberto Riberti, compôs um dos maiores sucessos do Carnaval, "Aurora" ("Se você fosse sincera / ô ô ô ô, Aurora"), gravado por Carmen Miranda.
A essas, os iniciados agregariam uma série de composições fundamentais, como a valsa "Devolve" ("Devolve, que eu te devolvo ainda / esta saudade infinda que eu tenho de ti"), a "Número Um", ("Passaste hoje ao meu lado / vaidosa de braços dados"), com Benedito Lacerda, "É Tão Gostoso seu Moço" (com Chocolate), gravado por Nora Ney. Todas essas músicas integram o repertório que recebemos de nossos pais e nem sei se passaremos aos nossos filhos.
Morreu como o avô que encarnava na TV, com cinco filhos, nove netos e três bisnetos. E deixou todos seus órfãos musicais aos cuidados dos últimos clássicos ainda vivos, Braguinha e Dorival Caymmi.

E-mail - lnassif@uol.com.br



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