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São Paulo, domingo, 02 de novembro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

O Anjo da História

RUBENS RICUPERO

"Com o rosto voltado para o passado, o Anjo da História tem de olhar nessa direção. Onde enxergamos uma cadeia constante de acontecimentos ele apenas percebe uma catástrofe única, incessantemente amontoando ruína sobre ruína..."
Foi com essas palavras que Walter Benjamin descreveu "Angelus Novus", o quadro de Paul Klee com que se identificava de modo misterioso. Ao olhar na TV as cenas de carnificina de Bagdá e da destruição sistemática de centenas de lares palestinos por buldôzeres israelenses, a descrição da história como um amontoado de ruínas ganha verossimilhança dramática. Em nenhum outro lugar soa a frase tão convincente como nesse arcaico Oriente Médio, berço e cemitério de civilizações, museu das ruínas prestigiosas de Babilônia, Nínive, Jericó, às quais se acrescentam, a cada dia que passa, as fabricadas pelos conflitos de hoje.
A imagem quase grotesca desenhada por Klee está sempre presente na estranha peça que vi em Genebra. Montada sobre textos e fragmentos de Benjamin, "One Way Street" ("Rua de Mão Única") evoca, a começar pelo título, a fuga contínua do pensador fulgurante, mas "gauche", na vida prática, até que, na fronteira entre a Espanha e a França, se suicida para não cair em mãos dos nazistas. Não há atores; apenas marionetes desconjuntadas, a melhor maneira de sugerir, mais que narrar, pois quase não há falas, o destino sombrio de uma inteligência luminosa e sensível destruída pela mais cruel das catástrofes do século 20.
Um pouco como Fernando Pessoa, Walter Benjamin possuía certo fraco pelas coisas ocultas, pelo hermetismo da tradição cabalística. Chegou a pensar, um momento, em emigrar para a Palestina. Se o tivesse feito para escapar das ruínas que então se acumulavam na Europa, teria se encontrado em região na qual a produção de ruínas tinha um longo e garantido futuro pela frente.
Mais ou menos na mesma semana em que fui ver esse espetáculo, chegou a notícia da morte do mais célebre intelectual palestino do nosso tempo, Edward Said, professor de Columbia, brilhante demolidor dos mitos e preconceitos sobre os árabes, a que alguns ocidentais tentam dar respeitabilidade científica chamando-os de "Orientalismo". Andei relendo trechos de suas memórias, "Out of Place", de que gosto particularmente. Em especial as páginas tocantes sobre a mãe, de ternura profunda e lucidez quase cruel em dissecar uma relação de sutilezas e contradições, às vezes do mais perfeito entendimento, outras, de doloroso desencontro.
Said ocupava posição única, por representar, ao mesmo tempo, o melhor da grande tradição cultural do Ocidente e do Oriente Médio, sem pertencer exclusivamente a nenhuma delas -daí o título das memórias. Graças a isso, ninguém fez mais do que ele para sustentar, em meio hostil como o dos EUA e de Nova York, a causa desamparada do seu povo.
Resolvi escrever este artigo após ler o último ensaio que publicou, em 25 de setembro, pouco antes de sua derrota final na luta de anos contra doença implacável. Estar doente por um longo período, começa o ensaio, é sentir um terrível desamparo, mesclado a fases de lucidez analítica. "Nos últimos três meses, (...) constantemente entrando e saindo do hospital, os dias marcados por longos e dolorosos tratamentos, transfusões de sangue, intermináveis exames, horas e horas de tempo improdutivo contemplando o teto, absorvendo cansaço e infecção e pensando, pensando, pensando."
Nessa espécie de testamento no leito de morte, perpassa o sopro da indignação com os insuportáveis sofrimentos infligidos aos palestinos, descritos com minúcia cotidiana, e de inconformidade com o silêncio e indiferença do resto do mundo. Não há, porém, amargura, ressentimento, ódio, apenas a luz incômoda de uma exigente consciência moral.
A grandeza de Said foi não ter sucumbido ao anti-semitismo generalizado na região. Seu ensaio, "Dignity, Solidarity and the Penal Colony", é justamente uma contribuição a uma coletânea de denúncia da "política de anti-semitismo". Nos seus últimos anos, o ensaísta, que era também pianista de nível quase profissional, engajou-se com Daniel Baremboim em iniciativa para promover, por meio da música, o entendimento entre jovens israelenses e palestinos. No fim, deixou de acreditar na viabilidade de dois Estados separados porque lhe parecia impossível dividir comunidades que se interpenetravam a um ponto extremo. Defendeu o que a muitos não passa de utopia ingênua, a tese da necessidade da coexistência dos dois povos no seio de um Estado democrático.
Habitado por esse mito criador, é fácil entender o horror que expressa diante do muro que corta na carne da terra palestina. Devo confessar que, a mim também, pouca coisa me deprime mais do que a volta da tendência de levantar barreiras e cercas entre seres humanos. Durante décadas, os muros de Berlim e do apartheid simbolizaram tudo o que havia de errado e pior no mundo. Parecia um sonho quando ambos acabaram. Mas o sonho não durou. O recrudescimento do terrorismo, não só em Israel, também contra os EUA, a exacerbação da insegurança, o temor da invasão dos imigrantes miseráveis estão estimulando a construção de cercas e muros, no Oriente Médio, ao longo da fronteira americano-mexicana, contra africanos e árabes na Europa.
Gosto de pensar que, embora muito diferentes, Benjamin e Said teriam se entendido. As idéias políticas do palestino eram minoritárias no seu próprio grupo e é até possível que fossem incuravelmente irrealistas. Não importa, elas refletem a generosidade de uma poderosa inteligência, a sabedoria de alma sensível, e essas qualidades Benjamin tinha de sobra.
É de gente como eles que terá de nascer a paz, por improvável que seja, simplesmente porque é necessária, se não quisermos que as ruínas de Ramallah ou de Bagdá venham a invadir o mundo inteiro, convertendo-o em paisagem de ruínas separadas por muros. Poucos problemas possuem como esse a capacidade de desestabilizar o planeta. Não é proibido sonhar que culturas como as que produziram Benjamin e Said serão um dia capazes de curar as feridas e de construir a paz com justiça e dignidade. Para isso, precisamos da virtude de que ninguém falou melhor que Benjamin, na frase usada por Marcuse para fechar seu famoso livro: "A esperança nos foi dada apenas por causa daqueles que perderam toda esperança".


Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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