São Paulo, quarta, 2 de dezembro de 1998

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LUÍS NASSIF

Simon, o Catão

Os telespectadores do "Roda Viva" de segunda-feira passada puderam assistir o testemunho de um brasileiro ilustre, o senador Pedro Simon, o grande Catão da República. Não se espere do senador formulações sobre o novo país ou propostas que ajudem a superar a crise. Seu papel é o de ser o homem moral. Ele tem no cérebro um botão que, devidamente acionado, resulta invariavelmente em reações morais previsíveis, nem sempre pelo bem do país, nem sempre pelo mal, mas invariavelmente pela moral.
Por ser homem de julgamentos morais, como líder do Senado no governo Itamar, Simon avalizou o mais nefasto processo de abertura econômica do país, seis meses onde se misturaram câmbio apreciado, na saída do Real, e abertura indiscriminada das importações, no curto período Ciro Gomes.
Tudo porque lhe colocaram ante um dilema moral, do qual não há escapatória. Abrir a economia significaria punir todos os empresários brasileiros gananciosos, que viviam da exploração dos consumidores, explicaram-lhe os economistas. Manter a economia no ritmo anterior significaria beneficiá- los. E, rigoroso como Catão, o senador virou o polegar para baixo e endossou a degola.
Seis meses depois, o senador começou a perceber o outro lado da abertura indiscriminada. Em vez de empresários gananciosos, o modelo destruíra triticultores de seu Estado, levara a miséria ao campo e o desemprego às cidades. Aí o senador Simon se safou com um "como é que eu poderia saber?", e preparou seu melhor discurso moral contra o "neoliberalismo". Inês já era morta. O país perdeu horrores, mas em nome de um bom princípio moral.

Privatização
O mesmo ocorreu com a privatização. Defensor intransigente dos direitos dos trabalhadores, passou em branco a Simon, no governo Itamar, a campanha encetada por diversas pessoas em defesa da privatização com fundos sociais.
A proposta poderia ter mudado a face do capitalismo brasileiro, mas era complexa demais para se enquadrar nos julgamentos morais do senador. Misturar trabalhador e mercado era algo inconcebível. Afinal, mercado não é aquele lugar onde as pessoas se reúnem para planejar sacanagens? A imagem de um varão de Plutarco é importante demais para ser exposta a riscos de uma proposta que poderia ser questionada.
Nos anos seguintes, já no governo FHC, o senador manteve a postura de consciência crítica dos pequenos casos. Sua conduta na CPI dos Precatórios foi a de sempre. Senadores mais espertos queriam a CPI restrita ao estritamente necessário para fuzilar seus adversários, e nada mais. Quando a CPI ganhou vulto e se percebeu que, em lugar de um preá, tinham atingido uma onça, o senador Roberto Requião tentou varrer a onça para debaixo do tapete, levantou uma carta de uma assessoria de imprensa esperta, e esbravejou: "É a prova de que todos os críticos da CPI fazem parte de uma grande conspiração da imprensa para impedir que ela chegue ao fim". Apertado o botão do cérebro, Simon avalizou sua posição em um discurso memorável: "É isso mesmo". E permitiu à CPI terminar em meia pizza.

Grande momento
Mas continuou firme, jamais esmorecendo em favor dos julgamentos morais. Em entrevista ao Jô Soares, brilhou. Relembrou as bandeiras de FHC, a sujeição a ACM, e o fato de ter deixado de ouvir os grandes aliados, os homens com sensibilidade social, como Mário Covas, João Gilberto e Euclides Scalco. Obrigou FHC a vir a público se explicar, porque resistir a um julgamento moral de nosso Catão, quem há de?
Na sequência, protagonizou momentos memoráveis com Antonio Carlos Magalhães, um duelo de espadachins renascentistas, rico em retórica, vazio de sentido, mas que fazia as paredes do Parlamento vibrarem: que grande momento político!
Quando setores do governo começaram a questionar e tentar reverter a visão financista dos primeiros anos, estabelecer uma visão mais voltada para o mundo real, para a organização das forças econômicas visando o aumento da produção e a geração de emprego, o senador passou ao largo.
Nas fases de construção, pouco espaço há para o exercício do julgamento moral. É um trabalho árduo, que exige levantar tijolo a tijolo, conceber o espaço, definir a ação. O senador Simon se recolheu às sessões do Senado, com seu estilo aparentemente sonolento, de quem cochila em plenário mas mantém o olho aceso, à espera do próximo tema moral. Até entendeu o significado do Ministério da Produção, percebeu que era a maneira de contrabalançar a visão excessivamente financista da Fazenda. Percebeu que Covas, seu novo líder, começava a ser ouvido, que o presidente começava a ser convencido.
Mas quando a obra estava quase pronta, surgiu o "grampo", a conversa "desabrida", e, com ele, a grande oportunidade do senador voltar a brilhar.
Fez um discurso memorável que despertou as mesmas manifestações que se dedicavam a Ruy, Lacerda, Almino e outros grandes tribunos. Um dos grandes momentos do Parlamento brasileiro, um discurso notável, um dos grandes capítulos da história da República, ah, nossa alma lusitana...
A idéia do Ministério da Produção refluiu, o presidente se encolheu, as bandeiras que o senador diz defender foram enroladas. Mas nada que não valesse o preço do grande momento.
Afinal, o senador não veio para edificar, mas para julgar.

E-mail:lnassif@uol.com.br



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