São Paulo, domingo, 03 de fevereiro de 2002

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Sofismas versus soluções

LUCIANO COUTINHO

Confrontados com novos ventos políticos e com a força dos fatos (por exemplo, a economia brasileira vulnerável a choques externos, pespegada em uma taxa de juros insustentável, incapacitada para alcançar um ritmo satisfatório de crescimento), os defensores acadêmicos da política econômica da gestão Cardoso-Malan se vêem perplexos. Alguns se aferram a uma defesa "principista" do paradigma liberal. Outros compreendem a necessidade de uma nova agenda e já reconhecem que -para poder reduzir expressivamente a taxa de juros- é imprescindível reduzir logo o grau de vulnerabilidade das contas externas, diminuindo o déficit em conta corrente por meio da realização de um crescente superávit comercial.
Apressam-se, porém, a colocar requisitos de consistência, tais como: aumento da taxa de poupança doméstica (requisito óbvio, se se deseja aumentar o investimento agregado num contexto de diminuição da dependência da poupança externa); manutenção de um superávit fiscal primário elevado na fase de transição; zelo para com metas de inflação.
Esses requisitos são evidentemente válidos e, embora desafiadores, podem ser alcançados se houver foco claro e manejo competente dos instrumentos de política econômica. Desde logo não é inviável -como postulam alguns- a ampliação da taxa de poupança doméstica. O incremento da formação de capital pode ser suportado por aumento substancial do crédito (do BNDES e do sistema bancário privado) e por estímulo ao mercado de capitais (remoção da CPMF do mercado e por regras de incentivo aos investidores institucionais). Decerto que esse movimento requer uma trajetória crível e cadente para a taxa de juros (o que, de quebra, facilitará o alongamento do perfil da dívida pública).
É falso, portanto, o argumento de que seria necessário efetuar um grande aumento do superávit fiscal para ampliar a poupança doméstica. Decerto, porém, que não se pode abrir mão da sustentação de um superávit fiscal primário alto num período de transição, até que o aumento do superávit comercial estabilize as expectativas e permita a desejada redução expressiva da taxa de juros.
Ao apontarem a necessidade de aumento da poupança doméstica, os economistas liberais terminam sublinhando a importância e a urgência da estruturação de um padrão de financiamento para a economia brasileira, dado que o precário arcabouço que existiu nos anos 70 foi desfuncionalizado e desmontado pela abertura financeira sem que nada tenha sido posto em seu lugar (a política Cardoso-Malan tratou, de fato, de aprofundar a extroversão financeira). Essa nova agenda deveria incluir uma discussão, a sério, sobre como viabilizar a expansão do crédito bancário e como promover o mercado de capitais com a velocidade necessária para que surja uma oferta adequada de "funding" (em termos de prazos e de custos de capital) para os novos investimentos associados à expansão das exportações e à substituição de importações.
A necessidade de políticas industriais organizadas por cadeias setoriais para expeditar a obtenção do superávit comercial tem sido ainda contestada pelos liberais com dois tipos de argumento: a) que essas políticas seriam pouco eficazes e desnecessárias, dado que a desvalorização recente já teria posto a taxa de câmbio em um nível suficiente para gerar superávits elevados -de todo modo, se isso não se verificar, a taxa de câmbio deveria ser depreciada ainda mais (se necessário, até para perto de R$ 3,5 por dólar!); b) que as políticas industriais implicariam efeitos redistributivos indesejáveis, em favor de segmentos empresariais e em detrimento das camadas pobres, que deveriam receber o benefício de gastos sociais ampliados.
O argumento de que a depreciação da taxa de câmbio pode, "per se", solucionar tudo esbarra em sérias dificuldades. Desde logo há que considerar os graves riscos inflacionários que decorreriam de novas rodadas sucessivas de desvalorização (por exemplo, para chegar a uma taxa de câmbio de R$ 3,5 por dólar). Além disso, com os preços das commodities de exportação já deprimidos, novas "máxis" teriam efeito marginal decrescente.
O segundo argumento carece de substância por duas razões: 1º) o novo estilo de política industrial competitiva, em cogitação, não é intensivo nem em incentivos fiscais nem em proteção tarifária, baseando-se em instrumentos de política similares aos utilizados nos países da OCDE; 2º) a redução da pobreza é, isso sim, efetivamente impossível no contexto atual de juros muito elevados, posto que: a) redistribui renda em favor do topo rentista da pirâmide social; b) a carga de juros inviabiliza qualquer espaço fiscal para novos gastos sociais; c) o crescimento econômico pífio deprime o mercado de trabalho. Ao contrário, a obtenção de crescente superávit comercial -com auxílio de uma política industrial contemporânea-, conjugado com uma queda expressiva da taxa de juros, constitui o caminho mais rápido e seguro (inclusive em termos de risco inflacionário) para a economia crescer sustentadamente com redução da desigualdade social.


Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).


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