São Paulo, domingo, 03 de fevereiro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTIGO

Ovo de Colombo?

CELSO DE CAMPOS TOLEDO NETO

Debate-se atualmente se a solução para o problema da conhecida "restrição externa", que tem impedido o país de crescer a taxas mais expressivas, não estaria na adoção de medidas que permitissem que o real se depreciasse ainda mais.
De acordo com a "saída pelo câmbio", como tem sido chamada, o real enfraquecido levaria à redução do déficit em transações correntes. Complementando a medida com diminuição na taxa de juros, estaria aberta a avenida para o crescimento.
Antes de concluir que estamos diante de um "ovo de Colombo", é importante tecer algumas ponderações.
1) Depreciação nominal versus depreciação real
Como se sabe, é a depreciação real do câmbio que importa para alterar a posição do país em transações correntes. Se a depreciação for acompanhada de inflação, o efeito é diminuído e, eventualmente, anulado.
O real está historicamente "barato". Tomando a paridade média de 1947 a 2001, constata-se que a moeda brasileira fechou o ano passado com depreciação real de cerca de 32%. É possível depreciá-la ainda mais?
Utilizando dados de 96 países para o período de 1960 até 1998, construíram-se as respectivas séries de taxas de câmbio em termos reais, relativamente ao dólar, verificando os períodos em que as mesmas estavam "depreciadas" ou "apreciadas" em relação à média. O exercício permitiu obter uma amostra de quase 3.000 observações.
Lembrando que o real está depreciado mais do que 30% em relação à média, é interessante constatar que, em cerca de 73% dos casos de nossa amostra internacional, as moedas gravitam em torno do intervalo de depreciação 20%. Note-se que depreciações acima de 40% são atingidas em apenas 8% dos casos, sugerindo que, após esse "limite", as depreciações nominais tendem a ser seguidas de inflação, não convertendo-se em depreciações reais (ver tabela).
2) Como proceder para evitar que uma depreciação nominal se reverta em inflação?
Quando a taxa de câmbio sobe, os produtos importados ficam mais caros, provocando aumento no nível geral de preços e, particularmente, nos custos industriais. A mudança de preços relativos pode fazer com que a meta de inflação seja perdida, afetando perversamente as expectativas de inflação. Mas esse não é o maior problema, pois, como se sabe, não cabe ao Banco Central combater mudanças de preços relativos.
O maior problema reside na propagação potencial do choque de custos aos outros preços. É simples verificar que, se o Banco Central mantiver constante ou reduzir a taxa de juro após uma forte depreciação cambial, haverá crescimento da demanda agregada, amplificando o choque inicial de custos, gerando inflação "genuína", não apenas mudança de preços relativos. A política monetária "neutra", que não acomoda o choque de custos, requer aumento na taxa básica de juros (1).
Para que o real se deprecie (em termos reais) além do patamar fortemente depreciado em que se encontra atualmente, seria preciso que a medida fosse complementada por aumento do juro, com evidente efeito deletério sobre o crescimento econômico. Caso contrário, o resultado seria mais inflação, sem crescimento.
3) Em que condições as depreciações cambiais afetam menos os preços?
Os efeitos "primários" das depreciações cambiais sobre os preços tendem a ser menores quando a economia se encontra fortemente deprimida e quando a moeda se encontra apreciada em termos reais (2).
Naturalmente, o atual estado da economia não é de crescimento excessivo. Mas também é verdade que estamos longe de uma recessão profunda, com convincentes sinais de que 2002 apresentará crescimento maior que 2001. E, como se viu anteriormente, a moeda encontra-se fortemente depreciada.
Conclusão: depreciações adicionais do câmbio tenderiam a ter, hoje, impactos maiores sobre os preços do que os observados no passado recente.
4) O problema do setor externo é cambial?
Note-se, no gráfico, que o nível atual da taxa real de câmbio costumava ser associado a um déficit em transações correntes muito menor do que o registrado nos últimos anos. Até 1987, nos anos em que a taxa de câmbio esteve depreciada mais do que 25%, o déficit em transações correntes médio foi de cerca de US$ 3,1 bilhões. Atualmente, o câmbio está depreciado em mais do que 30% e o déficit em transações correntes é de cerca de US$ 20 bilhões.
Mesmo considerando que a economia era fechada antes de 1990 e que o câmbio foi muitas vezes controlado, é notável a discrepância. Sugere-se que, das duas, uma: a) ou o déficit em transações correntes deverá diminuir significativamente no futuro, sem que a taxa real de câmbio tenha que mudar; ou b) a solução do problema exige mais do que simplesmente desvalorizar o câmbio. Em outras palavras, ou a "saída pelo câmbio" é desnecessária ou inócua.
Como se sabe, há uma série de outros entraves não-cambiais às exportações brasileiras: a) estrutura tributária inadequada; b) portos e transportes ineficientes e caros e; c) protecionismo dos compradores, para mencionar alguns.
Concluindo, não há dúvida de que a "restrição externa" e a aparente rigidez do déficit em transações correntes ante o aumento expressivo da taxa de câmbio em termos reais tornam urgente definir uma estratégia para que o país consiga evitar problemas maiores no futuro. Alguns analistas têm sugerido a "saída pelo câmbio".
Antes de adotar essa estratégia, contudo, é preciso ponderar que: a) depreciações nominais não necessariamente resultam em depreciações reais; b) a moeda brasileira já está depreciada em termos reais, sendo improvável que se consiga depreciá-la muito mais, sem gerar pressões inflacionárias; c) o manual de macroeconomia sugere que a depreciação nominal seja seguida de elevação do juro, para evitar inflação, mesmo que se decida acomodar o aumento primário de preços; d) o estado atual da economia sugere que o impacto primário de uma depreciação seria hoje maior do que o que ocorreu no passado e; e) é, no mínimo, questionável a hipótese de que o problema das contas externas seja de natureza cambial.
Os juros estão altos, e muito. Mas, para rebaixá-los, o caminho é outro. Promover o ajuste das contas públicas, avançar na reforma tributária e reduzir o "custo Brasil".



Celso de Campos Toledo Neto é economista-chefe da MCM Consultores Associados e doutorando em economia na FEA-USP.


(1) Quando a moeda se deprecia, o nível geral de preços sobe. Esse é o efeito primário do "choque de custos". O estoque de moeda em poder do público diminui, portanto, em termos reais. Supondo que a demanda por moeda não se altere, a restauração do equilíbrio no mercado monetário forçará a taxa de juro para cima. No sistema de metas de inflação, no entanto, a taxa de juro é determinada pelo Banco Central. Como o mecanismo automático de ajuste não existe, é evidente que a autoridade monetária pode decidir manter constante ou reduzir a taxa de juro. Para fazer isso, contudo, ela deverá expandir a oferta real de moeda para atender a demanda (inalterada). Evidentemente, a expansão da liquidez faz com que a demanda aumente, amplificando o aumento primário dos preços.
(2) Ver o texto para discussão número 5 do Banco Central, de autoria de Sérgio Werlang, sobre esse assunto.



Texto Anterior: Mercados e Serviços: CCR reforça críticas contra Novo Mercado
Próximo Texto: Negócios: Fundos do Deutsche investem na Eucatex
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.