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OPINIÃO ECONÔMICA
Apocalípticos e integrados
RUBENS RICUPERO
Um abismo crescente separa
os contestatários, violentos
ou não, da globalização -Seattle, Gênova, Porto Alegre- dos
partidos de esquerda que afirmam partilhar algumas dessas
preocupações, mas se revelam incapazes de dar-lhes conteúdo concreto uma vez no poder. Nem os
primeiros merecem inteiramente
o epíteto de apocalípticos, pois
não são em geral niilistas ou utópicos, nem os últimos fazem jus à
designação de integrados, posto
que proclamam querer reagir
contra o pior da "desordem estabelecida". O título emprestado ao
livro de Umberto Eco pecará talvez por imprecisão, no varejo,
mas capta, no atacado, o sentido
aproximativo desse contraste.
Os principais líderes dos "integrados" acabam de reunir-se em
Estocolmo, embora tenham preferido chamar-se de "modernizadores", nome que não sei se foi o oficial, mas é o que saiu na imprensa
européia. Já por aí se introduz a
confusão e a ambiguidade. Modernizar, palavra neutra em matéria de valores morais, pode simplesmente servir de pretexto para
justificar a adesão ao paradigma
dominante, desqualificando, ao
mesmo tempo, como dinossauros
pré-históricos, os que a ele resistem.
É expressão que transmite também a idéia de que a política não
tem nada a ver com o problema
da justiça, da equidade, da desigualdade, da dignidade humana,
da opressão. Governar seria apenas, como se disse a propósito do
"fim da história", atividade assepticamente técnica, a monótona aplicação de soluções cientificamente na moda, isto é, "modernas", às questões fundamentais
da sociedade. Antigamente, falava-se em reformismo ou socialismo, termos que, embora não isentos de ambivalência, indicavam a
intenção básica de corrigir desequilíbrios na repartição do poder
político ou econômico em favor
dos mais débeis. Modernização,
ao contrário, evocaria em certas
condições o que foi descrito por
intérpretes da evolução histórica
brasileira como "modernização
conservadora". É um processo, em
certos casos ambicioso, de alteração política, chegando mesmo às
vezes à mudança de regime -a
Independência, a Proclamação
da República, a Revolução de
30-, mas sem tocar em profundidade nas estruturas sociais e econômicas. Dirigentes antigos são
substituídos por "modernos", esses dispõem-se até a cooptar
membros da velha classe dirigente -a exemplo dos conselheiros
do Império, Rodrigues Alves e
Afonso Pena, elevados a presidentes da República-, mas não há
transformações para valer nas posições respectivas de dominadores
e dominados em termos de poder
ou de riqueza.
A consequência é que os inconformados com o desconserto do
mundo já não se reconhecem
mais nos partidos ou sindicatos
que os representavam antes, apesar de não se terem ainda decidido a criar formalmente novas organizações partidárias. Como
raios de circunferência, os herdeiros da tradição marxista original
ou modificada -comunistas, socialistas, reformistas- vão se
afastando cada vez mais entre si à
medida que se distanciam do comum ponto de partida. Conforme
ocorreu, aliás, com os descendentes espirituais da Revolução Francesa, que deram tanto os hoje impropriamente chamados de radicais, quase sempre esteios da direita burguesa na Europa, como
os jacobinos, próximos à família
de esquerda. Esse divórcio gradual -mas não totalmente consumado- entre apocalípticos e
integrados é como a rearrumação
de camadas geológicas que se segue a um terremoto. O cataclismo
aqui foi o desaparecimento da
União Soviética e do comunismo
"real", que deixou o movimento
socialista sem a pressão que o
obrigava a tomar distância em relação ao capitalismo dominante.
O segmento mais criativo e em
expansão desse movimento outrora dinâmico e revolucionário é
o que desce à praça pública em
Gênova ou se reúne em fóruns de
discussão para tentar desenvolver
alguma alternativa para o que aí
está. Os restantes, os "aparatchik"
do maior partido no poder no
mundo, o dos ex-comunistas e ex-socialistas, dão a impressão de
que, ao perderem a fé na revolução e em Marx, perderam a fé em
si mesmos. De outro modo não se
explica que nem sequer tentem esboçar no governo alguma tímida
iniciativa de regulação dos excessos que clamam aos céus. Ao contrário, para espanto nosso, no
momento em que o escândalo da
Enron desvenda a canalhice de
megaempresários que literalmente saquearam os cofres das pensões das viúvas e órfãos, quando,
após arruinar companhias sólidas, dirigentes empresariais são
recompensados com "pára-quedas de ouro" de dezenas de milhões de dólares, a "terceira via"
inglesa propõe uma aliança com o
governo Berlusconi para flexibilizar o mercado de trabalho na Europa, isto é, para desfavorecer e
tornar ainda mais inermes os direitos do trabalho diante do poder
já quase incontrastável do capital.
Não surpreende assim o desencanto de militantes como Nanni
Moretti, que, antes de seu recente
desabafo contra os dirigentes do
Olivo, ainda no tempo do defunto
governo de centro-esquerda na
Itália, implorava, quase por amor
de Deus, ao primeiro-ministro,
oriundo do antigo partido comunista: "Por favor, D'Alema, diga
alguma coisa de esquerda!". O
pior é que o desencanto leva às vezes a tentativas desesperadas de
afirmar a própria identidade
mesmo à custa de entregar o poder à direita. Foi o que aconteceu
na Itália, onde o fato principal da
vitória de Berlusconi deve ser buscado na decisão da Rifondazione
Communista de não retirar seus
candidatos no segundo turno. O
mesmo sucedeu nas eleições americanas, com a opção dos democratas de esquerda de votar por
Ralph Nader, selando a derrota
de Al Gore. Perigo similar ronda
as eleições francesas, não só com o
aparecimento de Chevènement,
mas devido ao fortalecimento relativo da candidatura trotskista
de Arlette Laguiller. Não é muito
diferente a situação na Alemanha, tanto de Schröder como dos
Verdes.
Não se trata de perspectiva para
alegrar quem não acredita que dá
na mesma ter no poder a direita
reacionária ou a esquerda, ainda
que na versão moderada que prevalece na Europa Ocidental. Infelizmente, porém, é essa última
que cava a própria sepultura, ao
resignar-se ao "status quo", abandonando o esforço de constituir
verdadeira alternativa. Esquece,
dessa maneira, a lição de Bobbio:
com o desaparecimento, no mundo pós-Guerra Fria, da possibilidade de opções radicais e revolucionárias, o que continua a justificar a existência da esquerda é a
crença de que os privilégios e a desigualdade não são elementos inseparáveis da ordem natural das
coisas, mas produtos de escolhas
da sociedade, podendo ser corrigidos pelos homens, ainda que de
forma gradual e imperfeita.
Ao sustentar que os desequilíbrios e as assimetrias da atual estrutura socioeconômica são inevitáveis ou representam até estímulos desejáveis à competição, os
herdeiros das lutas operárias contra o capitalismo selvagem do século 19 renegam sua história e renunciam à sua única razão de ser.
Inelutavelmente, passam a merecer o destino da condenação
evangélica: "Se o sal perde a capacidade de salgar, para que há de
servir senão para ser lançado fora?".
Rubens Ricupero, 64, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail -
rubensricupero@hotmail.com
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