São Paulo, domingo, 03 de março de 2002

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Caminho crítico

LUCIANO COUTINHO

As atuais autoridades econômicas, especialmente as do Banco Central, têm-se esforçado em defender a viabilidade da atual política gradualista de redução do déficit externo com queda (ainda mais lenta) da taxa de juros. Alguns áulicos, mais otimistas, tentam vender cenários róseos em que todas as condições macroeconômicas se ajustariam suavemente contando com uma paciente disposição dos mercados financeiros (externo e interno) em financiar o déficit em conta corrente (que cairia devagar) e a rolagem da dívida pública. Esses exercícios supõem que o contexto internacional vá ser muito favorável, isto é, não ocorrerão choques financeiros, a taxa de risco-país cairá muito e rapidamente, o comércio internacional será benigno com as nossas exportações etc.
Trata-se, obviamente, de matéria de fé (ingênua) ou de má-fé acreditar e postular cenários mundiais superfavoráveis como base para a política macroeconômica do país. Qualquer mente responsável e sintonizada com a experiência dos últimos anos reconheceria a elevada probabilidade de ocorrência de choques externos adversos mormente ao tratar de cenários de longo prazo.
Simulações realistas do balanço de pagamentos e da evolução da dívida e das finanças públicas, efetuadas recentemente por Fernando Sampaio e por Bernard Appy, da LCA Consultores, mostram que as trajetórias macroeconômicas são inequivocamente sensíveis à ocorrência de choques externos. Num cenário de oito anos (correspondentes aos próximos dois mandatos presidenciais), por exemplo, a superveniência de apenas dois choques externos (arbitrariamente inseridos em 2005 e em 2008) pode inviabilizar a sustentabilidade das trajetórias. Os choques externos dificultariam o financiamento espontâneo do déficit em conta corrente e provocariam depreciações cambiais com pressões inflacionárias, o que exigiria elevações significativas da taxa de juros para conter o crescimento, atrair capitais e obter apoio internacional.
O impacto desses choques sobre os títulos públicos indexados à taxa Selic e também, em parcela importante, à taxa de câmbio é imediato e deletério, o que coloca sob tensão o financiamento da dívida mobiliária. As simulações concluem que há um caminho crítico que depende da frequência e da intensidade dos choques externos. Nas hipóteses adotadas, só seria possível obter trajetórias sustentáveis se o ajuste do déficit em conta corrente fosse efetuado com uma velocidade apreciável, por meio da obtenção de superávits comerciais substanciais e crescentes num prazo relativamente curto.
Até 2004, seria necessário alcançar um saldo comercial da ordem de US$ 13 bilhões a US$ 14 bilhões, de modo a convencer os mercados da solidez da trajetória das contas externas, permitindo a redução mais incisiva e irreversível da taxa de juros com efeitos virtuosos, efetivos, sobre a dinâmica da dívida pública. Nesse contexto, também seria possível reduzir rapidamente a parcela dolarizada da dívida, aliviando os efeitos desfavoráveis das depreciações cambiais sobre esta.
Em suma, a velocidade do ajuste externo não é irrelevante. Pelo contrário, um ajuste lento e excessivamente gradualista pode enveredar, facilmente, por rotas de colapso diante de choques externos, choques que rebatem negativamente sobre o crescimento do PIB e sobre as taxas de juros, câmbio e inflação com impactos explosivos indesejáveis sobre a dívida mobiliária pública.
Está posto, portanto, o desafio do ajuste mais rápido das contas externas. Uma política industrial bem coordenada com o setor privado, de promoção comercial e de investimento competitivo, só pode ajudar a alcançar essa trajetória mais segura e robusta.
Um dos caminhos para obtê-la são as políticas de entendimento setorial com as filiais das empresas transnacionais. Em tese recém-apresentada ao Instituto de Economia da Unicamp, Célio Hiratuka mostra que o comportamento comercial das empresas estrangeiras nos anos 90 não preencheu a expectativa dos economistas liberais. Apesar dos expressivos ganhos de produtividade e de eficiência, essas empresas não realizaram avanços comerciais (salvo no âmbito do Mercosul). Ao contrário, as empresas estrangeiras seguiram racionalmente os sinais da política macroeconômica. À sobrevalorização da taxa de câmbio na segunda metade da década correspondeu uma inflexão para estratégias importadoras e/ou de negligência vis-à-vis as possibilidades de investimentos orientados para a exportação.
Hoje, depois das maxidepreciações de 1999 e de 2001, coloca-se a oportunidade de acelerar a resposta das empresas estrangeiras ao estímulo cambial. A coordenação de suas decisões com políticas industriais setoriais pode apressar investimentos e iniciativas concretas na direção de novas fronteiras de exportação e de projetos de substituição de importações em prol de um ajuste mais rápido e benfazejo da balança comercial brasileira.


Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).


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