São Paulo, domingo, 03 de março de 2002

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LUÍS NASSIF

O "footing" e a "tábua"

Meu amigo Perri é de Mococa, mas viveu em Mogi-Mirim. Sou de Poços de Caldas, mas frequentei São João da Boa Vista. Aí, resolvemos relembrar algumas características das quatro cidades, e nos demos conta de que os hábitos dos anos 60, que considerávamos exclusivos de nossa tribo, eram nacionais.
Em quase todas as cidades havia o "footing" na sexta e no sábado à noite, às vezes no domingo à tarde. Na praça principal, as moças andavam em círculos internos, no sentido anti-horário, os rapazes do lado externo, ambos em sentido contrário para poder cruzar com várias pessoas e, a cada volta, rever o alvo da paquera.
Teve época que a obsessão do Sérgio Manucci, amigo nosso, era inverter a mão do "footing". A gente chegava às 19h na praça, antes dos outros, e começávamos a andar invertendo a mão. Mas era só encher a praça para os conservadores voltarem a impor o curso convencional. Como é difícil modernizar os hábitos do interior!
Em todas as cidades havia dois "footings". De um lado, o dos "ricos" -em Poços, a classe média, na Mococa do Perri, os fazendeirões. Do outro, o da classe popular para onde, em geral, íamos mais tarde namorar mocinhas mais fogosas do que as amigas de nossas primas e irmãs, alunas semi-recatadas de colégios de freiras. Em geral no meio havia o coreto com a retreta.
As mocinhas mais fogosas eram chamadas de "biscates". Certa vez, lá pros 25 anos de idade, ajudei a montar um jornalzinho em Poços e sugeri, como grande atração, a série "as biscatinhas do nosso tempo". Foi um perereque dos diabos! Aí, desistimos. Mas algumas, como Juju Faísca, ainda hoje moram no coração de toda nossa geração.
Ainda peguei um rescaldo do "corso", o desfile de carros no carnaval, com rapazes e moças nas capotas jogando confete, serpentina e lança-perfume Rodometálico, da Rhodia.
Eu usava lança-perfume porque meu pai recebia amostra grátis da Rhodia. Em geral, a meninada recorria às bisnagas de água. Às vezes misturávamos Lacto Purgo na água e virava o "sangue do diabo", um líquido vermelho que assustava as vítimas, mas que, depois de seco, não deixava mancha.
Certa vez, na sacada da casa de meu avô, em cima da farmácia central, Salve Sempre, do meu pai, à falta de uma bisnaga resolvi apelar para o xixi. E ensopei uma freguesa que saía da farmácia. Meu pai ficou louco da vida, com justa razão.
Pelo que o Perri e eu checamos, a maneira de abordar as moças nos bailes era a mesma.
Lá do canto do salão você encarava a donzela. Ela retribuía de soslaio. Você insistia, para confirmar. Se ela olhasse a segunda vez você botava a mão no bolso, porque jovem não sabe onde esconder a mão, e atravessava o salão com aquele andar desajeitado de adolescente, arqueando de um lado para o outro que nem bambu bêbado. Aí chegava de frente à donzela e fazia um sinal com a cabeça, apontando o salão. Se a donzela concordasse, começava a dança, inicialmente guardando distância respeitosa e, se a sorte ajudasse, terminando em rala-coxa.
Foi assim com minha primeira namoradinha, uma moça bonitinha de Paraguaçu de Minas, interna do Colégio São Domingos e colega da minha irmã mais velha.
Como era interna, só nos encontramos em duas circunstâncias: nas missas de domingo, para a qual consegui um lugar de coroinha, só pelo resto de vinho e de hóstia não consagrados e pela possibilidade de ver a musa; e na sua formatura. Lá, sem o olhar vigilante de Deus e das freiras, dançamos agarradinhos, de acordo com o manual. Foi o primeiro e último contato.
Nem sempre -a bem da verdade quase sempre- o resultado da abordagem era outro, ainda mais quando se é um adolescente magricela e desajeitado ambicionando mulher mais velha. Como nos Jogos Abertos da Mogiana, em Franca, ao qual compareci na condição de capitão do time de Tênis de Mesa da Associação Atlética Caldense. Tinha 17 anos, fui ao baile de encerramento com um pulôver gola rolê, especialmente tricotado por minha mãe, dona Teresa, e cumpri o ritual.
Mirei a moça, um baita de um mulherão -ainda que meio coroa, de uns 19 anos-, fiz o sinal, meus olhos míopes acharam que a donzela havia retribuído, atravessei o salão balançando o corpo, do jeitinho descrito pelo Perri.
Quando cheguei em frente à deusa e fiz o sinal com a cabeça, a resposta foi fulminante: "Não danço com criança". Eu havia sido vítima da pior tragédia que poderia acometer um adolescente: uma tábua! Aí o recurso é olhar de lado, conferindo se alguém percebeu, e retomar o trajeto de volta, com as mãos no bolso e o corpo bambeando. E, de preferência, assobiando para disfarçar.

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