São Paulo, quarta-feira, 03 de março de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Em busca de uma micareta

PAULO RABELLO DE CASTRO

Já vi pessoas de grande valor defenderem teorias de nenhuma valia tanto quanto já presenciei resultados econômicos excepcionais liderados por indivíduos de simplicidade ostensiva. A primeira situação me lembra muito do período que vai do final dos anos 70 ao início dos 90, quando acompanhei o colapso do modelo de desenvolvimento brasileiro e participei do debate sobre a tentativa de sua manutenção pela via da substituição de importações (leia-se manipulação de câmbio e subsídios generalizados), que não gerou crescimento, mas crise inflacionária, pela ampla convicção em teorias sofísticas, alquímicas e rocambolescas sobre como controlar a espiral de preços e salários. Era, afinal, um grande tempo aquele, embora não soubéssemos o tempo que estávamos perdendo.
A outra situação, menos permeada em minha memória técnica, corresponde ao período de grande crescimento, sustentado pelos impulsos de industrialização e urbanização do país, entre os anos 40 e 70, embalado por uma elite que acreditava existir um "projeto nacional", a ser alcançado e inspirado nas raízes modernistas e tenentistas dos movimentos culturais e políticos dos anos 20.
O resgate da idéia de crescer recobra alguma força ao início dos anos 90, com a percepção do potencial interiorano do país sertanejo e agrodoméstico (lembra-se ainda do Itamar?). Nesse momento, já estávamos, porém, completamente dominados pela desordem financeira e administrativa do Estado brasileiro, em todos os níveis, enquanto do exterior provinham os discretos mas persuasivos recados do establishment para a adoção do receituário conhecido como "Consenso de Washington".
Por que estou tão reminiscente enquanto recolho esses pedaços de história recente, como destroços de um naufrágio batendo na areia de uma praia deserta? Em primeiro lugar, porque somos nós os náufragos, sem carta nem sextante. E também por ter a sensação clara do pesadelo da repetição, uma espécie de sonho mau que retorna, com cada vez maior freqüência, à medida que contemplo o horizonte vazio das boas ilusões que antes sustentavam o prolongamento do nosso estado alegre de Carnaval. Pois Carnaval é marcha, é caminho percorrido, é extroversão e afirmação.
Hoje já não desfilamos bem. A escola Brasil se exibe mais para ganhar nota dos julgadores externos do que por alegria própria. E, se desfilamos, nossas alegorias são pobres, nosso carro do DNA apenas exibe metas inflacionárias mal cumpridas, atos do tal Copom, horrores da Cofins e cultos sinistros aos juros, juros e mais juros.
O país do Joãosinho Trinta demitido (quem diria!) é também o país do PT abatido por uma canhestra disciplina financeira (quem diria!) e notavelmente submisso -não por ser disciplina, mas por canhestra que é- às mesmas teorias regurgitadas pelos notáveis economistas oficiais dos anos 80 e 90, os mesmos que "racionalizaram" os absurdos heterodoxos dos congelamentos de preços e câmbio, que defendiam as "fiscais de Sarney" e que hoje encontram ninho na manutenção dos maiores juros do planeta e no estancamento da renda como fontes de futuro progresso e avanço social.
Os surpreendentes números macroeconômicos de 2003 -surpreendentes mais pela intensidade da queda do que pela direção negativa- revelam não só um PIB retroativo (menos 0,2%), o que seria previsível pela alta vulnerabilidade do país a elementos externos, mas, sobretudo, um acanhamento doentio da formação bruta de capital (essa caiu mais que 6%), um retrocesso endêmico do consumo das famílias (3,3% negativos), esse impaludismo econômico apavorante que as autoridades insistem em negar diante das mais berrantes evidências, pelo medo de se lhes cobrar o diagnóstico de que não dispõem -nem, muito menos, a terapêutica- do caminho de volta para uma economia mais saudável.
A recordação dos anos 80 é imperativa porque o pesadelo está de volta. As teorias heterodoxas dos congelamentos de preços e dos déficits fiscais amigáveis, da prioridade ao "mercado interno" e da hegemonia do Estado-empresário prosseguem hoje, travestidas de juros altos como ferramenta de austeridade monetária (quem disse?), do superávit primário como indicador de controle fiscal (o que dizer dos elevados déficits nominais?) e metas inflacionárias, com preços regulados, como instrumento de aferição de estabilidade econômica.
Essa longa quaresma de racionalidade econômica encontra apenas uma explicação plausível: os governos do Brasil, já há algum tempo, não têm mais nenhum compromisso com o crescimento. A sociedade tornou-se complacente com esse descompromisso. Ela mesma parece ter se desculpado da omissão coletiva. Ainda é educado e politicamente correto fazer uma ou outra menção, sempre prudente e moderada, ao Brasil que vai crescer "no ano que vem", não importa qual ano seja, desde que o próximo.
Não acordaremos desse sonho mau apenas num sacolejo. É preciso fazer muito mais barulho. Precisamos, urgentemente, de uma alegre e tardia banda de micaretas.


Paulo Rabello de Castro, 55, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

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