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OPINIÃO ECONÔMICA
Em busca de uma micareta
PAULO RABELLO DE CASTRO
Já vi pessoas de grande valor
defenderem teorias de nenhuma valia tanto quanto já presenciei resultados econômicos excepcionais liderados por indivíduos
de simplicidade ostensiva. A primeira situação me lembra muito
do período que vai do final dos
anos 70 ao início dos 90, quando
acompanhei o colapso do modelo
de desenvolvimento brasileiro e
participei do debate sobre a tentativa de sua manutenção pela
via da substituição de importações (leia-se manipulação de
câmbio e subsídios generalizados), que não gerou crescimento,
mas crise inflacionária, pela ampla convicção em teorias sofísticas, alquímicas e rocambolescas
sobre como controlar a espiral de
preços e salários. Era, afinal, um
grande tempo aquele, embora
não soubéssemos o tempo que estávamos perdendo.
A outra situação, menos permeada em minha memória técnica, corresponde ao período de
grande crescimento, sustentado
pelos impulsos de industrialização e urbanização do país, entre
os anos 40 e 70, embalado por
uma elite que acreditava existir
um "projeto nacional", a ser alcançado e inspirado nas raízes
modernistas e tenentistas dos movimentos culturais e políticos dos
anos 20.
O resgate da idéia de crescer recobra alguma força ao início dos
anos 90, com a percepção do potencial interiorano do país sertanejo e agrodoméstico (lembra-se
ainda do Itamar?). Nesse momento, já estávamos, porém,
completamente dominados pela
desordem financeira e administrativa do Estado brasileiro, em
todos os níveis, enquanto do exterior provinham os discretos mas
persuasivos recados do establishment para a adoção do receituário conhecido como "Consenso de
Washington".
Por que estou tão reminiscente
enquanto recolho esses pedaços
de história recente, como destroços de um naufrágio batendo na
areia de uma praia deserta? Em
primeiro lugar, porque somos nós
os náufragos, sem carta nem sextante. E também por ter a sensação clara do pesadelo da repetição, uma espécie de sonho mau
que retorna, com cada vez maior
freqüência, à medida que contemplo o horizonte vazio das boas
ilusões que antes sustentavam o
prolongamento do nosso estado
alegre de Carnaval. Pois Carnaval é marcha, é caminho percorrido, é extroversão e afirmação.
Hoje já não desfilamos bem. A
escola Brasil se exibe mais para
ganhar nota dos julgadores externos do que por alegria própria. E,
se desfilamos, nossas alegorias
são pobres, nosso carro do DNA
apenas exibe metas inflacionárias mal cumpridas, atos do tal
Copom, horrores da Cofins e cultos sinistros aos juros, juros e mais
juros.
O país do Joãosinho Trinta demitido (quem diria!) é também o
país do PT abatido por uma canhestra disciplina financeira
(quem diria!) e notavelmente
submisso -não por ser disciplina, mas por canhestra que é- às
mesmas teorias regurgitadas pelos notáveis economistas oficiais
dos anos 80 e 90, os mesmos que
"racionalizaram" os absurdos heterodoxos dos congelamentos de
preços e câmbio, que defendiam
as "fiscais de Sarney" e que hoje
encontram ninho na manutenção dos maiores juros do planeta
e no estancamento da renda como fontes de futuro progresso e
avanço social.
Os surpreendentes números
macroeconômicos de 2003 -surpreendentes mais pela intensidade da queda do que pela direção
negativa- revelam não só um
PIB retroativo (menos 0,2%), o
que seria previsível pela alta vulnerabilidade do país a elementos
externos, mas, sobretudo, um
acanhamento doentio da formação bruta de capital (essa caiu
mais que 6%), um retrocesso endêmico do consumo das famílias
(3,3% negativos), esse impaludismo econômico apavorante que as
autoridades insistem em negar
diante das mais berrantes evidências, pelo medo de se lhes cobrar o
diagnóstico de que não dispõem
-nem, muito menos, a terapêutica- do caminho de volta para
uma economia mais saudável.
A recordação dos anos 80 é imperativa porque o pesadelo está
de volta. As teorias heterodoxas
dos congelamentos de preços e
dos déficits fiscais amigáveis, da
prioridade ao "mercado interno"
e da hegemonia do Estado-empresário prosseguem hoje, travestidas de juros altos como ferramenta de austeridade monetária
(quem disse?), do superávit primário como indicador de controle fiscal (o que dizer dos elevados
déficits nominais?) e metas inflacionárias, com preços regulados,
como instrumento de aferição de
estabilidade econômica.
Essa longa quaresma de racionalidade econômica encontra
apenas uma explicação plausível:
os governos do Brasil, já há algum
tempo, não têm mais nenhum
compromisso com o crescimento.
A sociedade tornou-se complacente com esse descompromisso.
Ela mesma parece ter se desculpado da omissão coletiva. Ainda é
educado e politicamente correto
fazer uma ou outra menção, sempre prudente e moderada, ao Brasil que vai crescer "no ano que
vem", não importa qual ano seja,
desde que o próximo.
Não acordaremos desse sonho
mau apenas num sacolejo. É preciso fazer muito mais barulho.
Precisamos, urgentemente, de
uma alegre e tardia banda de micaretas.
Paulo Rabello de Castro, 55, doutor em
economia pela Universidade de Chicago
(EUA), é vice-presidente do Instituto
Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de
crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada
15 dias, nesta coluna.
E-mail -
rabellodecastro@uol.com.br
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