São Paulo, quarta-feira, 03 de março de 2004

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ARTIGO

Crescimento dos países requer opções dolorosas

MARTIN WOLF
DO "FINANCIAL TIMES"

Dizem que um camelo é um cavalo criado por uma comissão. Isso é injusto para com os camelos. Eles podem ser feios e truculentos, mas são maravilhosamente adaptados a seu ambiente árido. Infelizmente, o mesmo quase nunca vale para os produtos das comissões.
O relatório da semana passada da Comissão Mundial sobre a Dimensão Social da Globalização, patrocinada pela Organização Internacional do Trabalho, não é exceção. O relatório é longo em aspirações bem-intencionadas e curto em análise rigorosa.
Apesar de todas as limitações do relatório, pelo menos quatro pontos devem ser destacados: a era da globalização viu importantes avanços econômicos em importantes países pobres; as políticas comerciais dos países ricos são indefensáveis; a liberalização financeira adotada por muitos países em desenvolvimento freqüentemente teve conseqüências danosas; e a condição necessária para o alívio da pobreza extrema é uma maior ajuda internacional para os países mais pobres.
Em 16 países em desenvolvimento, que contêm 45% da população mundial, o Produto Interno Bruto per capita aumentou mais de 3% ao ano entre 1985 e 2001. Entre esses, estão dois gigantes asiáticos, a China e a Índia. Isso é animador. Mas em 23 países, que contêm 5% da população mundial, o PIB per capita declinou. Em outros 14, contendo pouco menos de 8% da população mundial, a renda per capita subiu menos de 1% ao ano. Ao todo, cerca de 750 milhões de pessoas vivem em países que estão falindo.
A globalização criou oportunidades. Muitos se beneficiaram. Mas muitos não. Mais uma vez, o histórico da liberalização do comércio pelos países de alta renda em áreas de maior interesse para os países em desenvolvimento é deplorável. O relatório é notavelmente franco sobre isso. "O protecionismo agrícola é um dos principais obstáculos para a redução da pobreza", diz o relatório.
Sobre a liberalização financeira, o relatório afirma que a instabilidade dos fluxos financeiros prejudicou os países em desenvolvimento. Por isso, eles "deveriam poder adotar uma abordagem mais cautelosa e gradual à liberalização da conta de capital".
Por fim, o documento tem razão ao salientar que a assistência oficial ao desenvolvimento é hoje pouco superior a 0,2% do PIB dos países de alta renda. Os EUA estão gastando mais no Iraque do que todos os países de alta renda estão gastando nos países em desenvolvimento. Isso é indefensável.
No entanto o relatório também tem defeitos notáveis. Estes vêm em parte de sua aceitação relutante do papel das forças de mercado no desenvolvimento e sua indisposição para enfrentar os críticos mais tolos da globalização. Mas também vêm do fato de ele evitar as opções dolorosas.
O relatório pede um "Estado democrático e eficaz". A maioria concordaria com isso. Mas a democratização provou ser uma condição nem necessária nem suficiente para o desenvolvimento econômico. O país em desenvolvimento mais importante e mais bem-sucedido nas últimas duas décadas é a China. Seu sucesso é apenas o exemplo mais marcante de um fenômeno geral no leste da Ásia: o progresso desses países não começou sob a democracia, mas sob regimes autoritários.
Novamente, considere-se a soberania. A capacidade de as pessoas se envolverem em atividades econômicas produtivas depende, mais que nada, da qualidade do Estado. Infelizmente, os países com as populações mais pobres são, quase por definição, mal governados. A isso o relatório responde pedindo uma "boa governança nacional, construída sobre um sistema político democrático, o respeito aos direitos humanos e a igualdade de gêneros, a igualdade social e o domínio da lei".
Os 20 países mais pobres são praticamente tão pobres hoje quanto já eram há 40 anos. Isso só pode ser modificado se eles começarem a funcionar de maneira diferente, o que exigirá uma grande ajuda externa. Mas também vai exigir uma transformação doméstica radical. Se a soberania desses Estados disfuncionais for protegida, suas populações continuarão pobres. Para que suas populações sejam ajudadas, a soberania de seus Estados deve ser questionada. Esse é um dilema que não será solucionado por clichês sobre a boa governança e o respeito aos direitos humanos.
Agora examine os padrões de trabalho. O relatório é, como seria de esperar de um documento da OIT, influenciado pela onipresença, nos países em desenvolvimento, de mercados de trabalho informais e desregulamentados. O que falta é um reconhecimento de como os mercados de trabalho realmente funcionam em economias com enormes excedentes de mão-de-obra desqualificada.
Existe um relacionamento maligno entre os padrões relativamente altos, e custos, nos mercados de trabalho formais e a ausência desses padrões e os baixos custos nos informais. O crescimento do setor formal é prejudicado pela regulamentação, gerando um maior excedente de trabalhadores para uma economia informal subcapitalizada. O resultado é uma economia dualista, com um setor formal moderno relativamente bem pago e um enorme setor informal desregulamentado e impossível de regulamentar.
Essas dificuldades não são banais. É irresponsável fingir que podemos ter tudo o que desejamos, sem jamais precisar fazer opções dolorosas.
A democracia, a soberania e os padrões de trabalho elevados nem sempre, ou mesmo necessariamente, andam juntos com o crescimento econômico mais rápido e a prosperidade mais distribuída. Às vezes temos de escolher. Esse relatório precisa nos aconselhar a como fazer isso.
Se o mundo assumir como uma de suas prioridades a promoção do desenvolvimento mais rápido nos países mais pobres, frágeis e pior governados, essas evasões não servirão. Somente governos honestos com políticas sensatas e instituições decentes farão o serviço. Mas também devemos estar dispostos a tolerar a operação das forças de mercado, em países ricos e pobres, por mais desconfortáveis que sejam. A tarefa que enfrentamos é enorme, e algumas das opções são dolorosas. Não vamos fingir que as coisas são diferentes.


Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves


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