São Paulo, domingo, 03 de abril de 2005

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IMPUNIDADE

Procuradores e promotores de Justiça se queixam de legislação que abre brechas para sonegadores se livrarem de punições

Leis travam combate a crimes tributários

CLAUDIA ROLLI
FÁTIMA FERNANDES

DA REPORTAGEM LOCAL

Um dos maiores empresários do setor de construção civil do país deixou de pagar R$ 7 milhões de tributos ao governo federal e foi condenado no ano passado a quase três anos de prisão. Quinze dias após a decisão do juiz, o empresário quitou à vista o débito. Com isso, livrou-se da cadeia.
O empresário se safou da pena ao recorrer à lei 10.684, de maio de 2003, que, em seu artigo 9º, extingue a punição para os contribuintes que pagam de uma só vez suas dívidas com a Receita Federal e com a Previdência Social.
Esse caso não é único. Centenas de empresários se beneficiam de leis como essa -que instituiu o programa de parcelamento especial de débitos (Paes)- e de outras que abrandam punições dos contribuintes que cometem crimes tributários. Procuradores e promotores de Justiça que atuam no combate a esses crimes estão indignados com as leis que tratam de crimes da ordem tributária e decidiram pressionar o Executivo e o Legislativo para modificá-las.
A extinção de punições para quem sonega e frauda os impostos se tornou mais evidente a partir de 1995, com a lei 9.249. Em seu artigo 34, essa lei suspende a punição para os que pagam impostos ou contribuições sociais antes de a denúncia ser feita à Justiça.
Um ano depois, a lei 9.430 determinou que a Receita, responsável pelo recolhimento de tributos como IR, PIS, Cofins, IOF e CPMF, só poderia encaminhar documentos de suspeitas de crimes ao Ministério Público depois de concluída a fase administrativa de investigação interna do órgão. Cabe ao MP abrir um processo e denunciar o contribuinte à Justiça quando há indícios de crime.
Em 2000 e 2003, as leis do Refis (programa de refinanciamento de dívidas federais) e do Paes deram mais uma chance para os contribuintes escaparem de punições. Editada no governo FHC, a lei do Refis suspende a punição antes de ser feita a denúncia criminal. A do Paes, criada no governo Lula, nem leva em conta esse prazo: se o sonegador pagar o que deve, se livra da pena a qualquer momento.
Uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) do final de 2003 sobre crimes tributários deixou os promotores mais revoltados ao reafirmar que não há crime tributário enquanto não acabar o processo administrativo na Receita.
Para o governo, o que interessa é a arrecadação: receber os tributos sonegados ou atrasados. Para os procuradores, sem punição, o país facilita -e estimula- o crime tributário. "A cultura do país é receber, não prender. A missão da Receita é arrecadar impostos", diz Luiz Fernando Lorenzi, coordenador-geral substituto da área de fiscalização da Receita.
"É usual em crimes contra o patrimônio haver condenação, e depois a pena ser convertida. A teoria é que uma pessoa produtiva não deve ser privada de liberdade", diz Everardo Maciel, consultor e ex-secretário da Receita.
"O Ministério Público Federal não tem o objetivo de perseguir os empresários. A atividade deles é essencial para a economia. Mas o fato é que existem regras para qualquer atividade, pública ou privada, que decorrem da Constituição, e o Ministério Público age na fiscalização dessas regras", diz o procurador Luciano Feldens, que atuou em dezenas de casos de sonegação na região Sul do país.
"Com essas leis, é um baita negócio não pagar impostos no país. Na pior das hipóteses, se a Receita descobrir que houve crime, o empresário paga o deve e se vê livre do processo. A legislação estimula a criminalidade", diz Douglas Fischer, procurador-regional da República da 4ª região (Sul). "O empresário que rouba milhões paga o que deve e se livra. Um trombadinha que roubar uma carteira com R$ 50 vai responder pelo crime, mesmo se devolver o que roubou. A lei não é igual para todos."
O Rio Grande do Sul é um dos mais ativos na condenação de empresários por crime tributário. De 95 para cá, centenas foram condenados à prisão -há casos de condenações em primeira instância de até 14 anos-, mas as punições foram abrandadas por conta da legislação tributária ou dos benefícios concedidos a todos pelo próprio Código Penal.
Como os sonegadores sabem que podem se livrar da prisão, deixam para pagar os tributos no último momento -ou seja, quando são condenados pela Justiça. E isso demora anos.
Enquanto o devedor do fisco se beneficia com a morosidade que vai desde a Receita Federal, com o processo de investigação administrativo, até a Justiça, com o processo criminal, os cofres públicos perdem arrecadação.
Na Previdência Social, o prejuízo com o não-pagamento devido da contribuição social soma R$ 120 bilhões, segundo a última lista de devedores, de dezembro de 2004. Das 236,5 mil empresas que estão na lista, 15.900 são responsáveis por 85% desse rombo.
No ano passado, a Receita constatou crime contra a ordem tributária em 4.221 fiscalizações, ou em 24% do total das realizadas no país. As autuações de pessoas jurídicas somaram R$ 75,1 bilhões, incluindo dívidas, multas e juros, e de pessoas físicas, R$ 3,1 bilhões.
O empresário da construção civil que sonegou R$ 7 milhões pagou sua dívida em 2004, mas o dinheiro já deveria estar nos cofres públicos desde 1995. O atraso no pagamento foi de nove anos.


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