São Paulo, domingo, 03 de abril de 2005

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TECNOLOGIA

Indústria do entretenimento quer responsabilizar fabricantes de software por troca de arquivos sem autorização

Justiça dos EUA define rumo da internet

DO "FINANCIAL TIMES"

A Suprema Corte dos Estados Unidos está decidindo o destino digital de dezenas de milhões de pessoas em todo o mundo. Todos os envolvidos no download de música on-line ou na venda de CDs, todos os comerciantes de aparelhos digitais, aqueles que cobiçam um iPod, os defensores da liberdade de expressão na internet e as pessoas que gostariam de restringi-la: todos têm alguma coisa em jogo no mais importante processo da era da internet.
O caso opõe a MGM ao Grokster, ou Hollywood à pirataria on-line, e testa a legalidade das chamadas redes de troca livre de arquivos, as quais permitem que seus usuários compartilhem com os demais assinantes seus arquivos e músicas. Ambas as partes concordam em que o caso vai bem além da música. Nas palavras dos interessados, o futuro da tecnologia, da internet e da economia norte-americana pode estar em jogo.
O caso atraiu um número recorde de petições apresentadas por terceiras partes interessadas em pressionar os juízes. Todo mundo, das gravadoras aos fabricantes de chips, passando pela liga de beisebol profissional, deu seu palpite.
O caso testa a barganha fundamental do capitalismo norte-americano: a de que os criadores deveriam desfrutar de proteção legal suficiente para induzi-los a continuar criando, mas o direito da sociedade de desfrutar e explorar os frutos desses esforços não deve ser cerceado. O setor de entretenimento diz que a pirataria on-line ameaça essa barganha ao privar os artistas e as empresas de entretenimento das receitas de que precisam.
Mas a outra parte -StreamCast e Grokster (empresas que distribuem software de troca livre de arquivos) e seus muitos simpatizantes no mundo da alta tecnologia- defende o argumento oposto: dizem que a inovação norte-americana será ameaçada caso a Suprema Corte decida tornar ilegal a troca livre de arquivos. Se as empresas de tecnologias forem consideradas responsáveis a cada vez que seus usuários fizerem algo de ilegal com um produto, a inovação será sufocada.
Até agora, a indústria fonográfica arcou com o grosso da pirataria na internet, porque os arquivos musicais podem ser baixados rapidamente, enquanto um filme pode demorar horas. As empresas de software também sofreram com a troca ilegal de seus produtos via internet. Mas Hollywood sabe que é apenas questão de tempo antes que um novo software e conexões mais rápidas tornem a pirataria on-line de filmes uma opção mais atraente.
A Suprema Corte já tentou uma vez decidir como regulamentar tecnologias novas e ainda não inteiramente compreendidas. A chance surgiu em 1984, quando a corte foi solicitada a tornar ilegal a venda de aparelhos de videocassete, sob a alegação de que eles constituíam uma ferramenta de pirataria. O juiz John Paul Stevens, que ainda integra a corte, escreveu a decisão, por maioria de cinco a quatro, sob a qual a Sony não deveria ser considerada responsável pelo uso indevido do Sony Betamax, apesar das queixas da indústria cinematográfica. Enquanto a tecnologia tivesse "uso legítimo substancial" (como a gravação de programas de televisão a serem assistidos mais tarde), os tribunais não deveriam interferir, decidiu a corte. A decisão abriu caminho ao desenvolvimento do setor de videolocadoras, um novo modelo de negócios que aumentou enormemente a receita da indústria cinematográfica, a despeito das objeções que ela expressara.
Os juízes podem agora decidir se querem manter a mesma abordagem distanciada com relação a uma tecnologia cuja probabilidade de violação de direitos autorais é consideravelmente maior. Ambas as partes concordam em que a vasta maioria do total estimado em dois bilhões de arquivos trocados a cada mês são piratas. A questão é determinar se a StreamCast e o Grokster podem ser consideradas responsáveis por contribuir para, ou mesmo induzir a, atos ilegais da parte das pessoas que empregam seu software.
Grokster e StreamCast fornecem o software, mas não exercem controle sobre o que os usuários fazem com os produtos depois de instalá-los. E o que os usuários fazem, na maioria do tempo, é realizar download de arquivos sem pagar. Ninguém está sugerindo que é uma atividade legal. A única disputa é determinar se o Grokster e a StreamCast podem ser processados por isso ou apenas os usuários individuais. Um tribunal federal de apelações na Califórnia determinou que não.
A decisão causou "apoplexia" à indústria do entretenimento: por que o Grokster e a StreamCast deveriam ser a autorizados a "fomentar uma cultura de desdém pela propriedade intelectual e pelos direitos dos outros, em termos gerais, no ciberespaço?", perguntam os estúdios e as gravadoras em uma petição redigida por Kenneth Starr, o antigo promotor especial que comandou o processo de impeachment contra Bill Clinton.

"Verdadeira questão"
Os aliados do Grokster adotam posição mais sutil em suas petições: a maioria deles não defende a pirataria. Retratam o caso como se nada tivesse a ver com música, de fato: a verdadeira questão é a política de tecnologia. De acordo com Gary Shapiro, presidente da Consumer Electronics Association, que apresentou petição em benefício do Grokster, se a indústria do entretenimento vencer o processo, ela terá o que equivale a um "poder de veto sobre novas tecnologias".
O tribunal pode simplesmente aplicar de maneira literal a decisão Betamax e decidir que, já que o software de troca de arquivos tem "uso legítimo substancial", seus produtores não devem ser considerados responsáveis por abuso, mesmo na situação atual.
Ainda que o tribunal não vá querer parecer partidário da difusão descontrolada da pirataria musical, é improvável que deseje que a Justiça assuma o papel de reguladora da tecnologia norte-americana, dizem os especialistas. Os juízes também estão cientes de que uma decisão contra o Grokster teria pouco efeito prático sobre a troca de arquivos, porque os serviços podem ser fornecidos de fora dos Estados Unidos.
De qualquer forma, a questão provavelmente será encaminhada ao Congresso dos Estados Unidos, ao qual, alegam os aliados do Grokster, cabe a responsabilidade constitucional por criar as regras de direitos autorais. No mandato passado, o Congresso tentou, sem sucesso, aprovar um projeto de lei que teria revertido a decisão Betamax. Caso a Suprema Corte venha a reafirmá-la no caso Grokster, o setor de entretenimento pressionará fortemente para que o Congresso tente de novo. Muitos envolvidos, dos dois lados do debate, dizem que o Legislativo seria o lugar certo para decidir uma questão de tamanha magnitude social; um lugar no qual a questão dos direitos de propriedade no ciberespaço -um dos maiores dilemas da era digital- poderia ser debatida da maneira devida, com o máximo de democracia.


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